Houve um tempo em que havia saraus nos bares dos Butantã. A poeta-atriz Renata Tavares, que agitava o sarau mensal do Beltiquim, certo dia me intimou:
– Pô, você só vem aqui pra beber cerveja e nunca aparece nos saraus! Diz que gosta de literatura, de poesia, mas some na hora do vamos ver. Pois está convocado a produzir algo de útil para o próximo, que será no sábado que vem!
Matutei um pouco e roubei uma idéia do primo Fábio, que já tinha feito uma brincadeira com os Manés. Preparei um pequeno texto, para ser lido a duas vozes, como um jogral, e ainda exibimos o filme Caramujo-Flor, do Joel Pizzini, pra começar a sessão.Outro dia achei o rascunho e registro aqui, para que relembrem os saraus (ainda existem, né, Artemiza?) e, principalmente, os Dois Mané.
DOIS MANÉ
Conheci o primeiro Mané, o Bandeira, ainda criança. Quis ter um porquinho da Índia, como ele. Fiz jogral na escola com os Sapos, sem saber explicar porque gostava de uma poesia tão boba. Troquei aquele Mané por poetas sofisticados, vanguardeiros, politizados. Depois, cresci. Os fumos, os álcoois e as carnes que provei me ensinaram a enxergar a beleza das coisas simples. E foi assim, vendo minha alma arada, que um bando de manoéis de barros fez ninho na minha cabeceira. Faz mais de vinte anos isso. Seus livros são sapos com a barriga brilhando, cheia de vagalumes. Por causa deste Manoel, voltei àquele. Um canta becos e balõezinhos; outro, ciscos e caramujos. Ambos, de forma muito sábia, se fazem de bobos pra melhor espiar o mundo.
Um Mané
Sou bem nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois veio o mau destino
E fez de mim o que quis.
Outro Mané
Em menino, eu sonhava de ter uma perna mais curta.
Só pra poder andar torto.
Prefiro as linhas tortas, como Deus.
Um Mané
Vi terras da minha terra
Por outras terras andei
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado
Foram terras que inventei.
Outro Mané
Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece
que foram inventadas.
Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada.
Mas quando não desejo contar nada, faço poesia.
Um Mané
Um dia eu vi uma moça nuinha no banho
Fiquei para o coração batendo
Ela se riu
Foi o meu primeiro alumbramento.
Outro Mané
A imarcescível puta preta
Que me arrastou na adolescência
Me ensaruou de sua concha.
Um Mané
Minha grande ternura
Pelos passarinhos mortos;
Pelas pequeninas aranhas.
Outro Mané
Mosca dependurada na beira de um ralo –
Acho mais importante do que uma jóia pendente.
Um Mané
Uma noite,
Uma noite toda cheia de murmúrios, de perfumes e
da música das asas.
Outro Mané
De noite o silêncio estica os lírios.
O meu amanhecer vai ser de noite.
Um Mané
Uns tomam éter, outros cocaína.
Eu já tomei tristeza, hoje tomo alegria.
Outro Mané
Alegria é apanhar caracóis nas paredes bichadas!
Coisa que não faz nome pra explicar
Como a luz que vegeta na roupa do pássaro.
Um Mané
Dentro de mim florescem jardins.
Minhas flores são inventadas.
Outro Mané
Natureza é uma força (…)
Que me enche de flores calores insetos.
Um Mané
Eu quero a estrela da manhã!
Outro Mané
Mas se estrela fosse brejo, eu brejava.
Um Mané
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos.
Outro Mané
Poesia:
Emprego de palavras imagens cores sons etc. geralmente
Feitos por crianças pessoas esquisitas loucos e bêbados.
Um Mané
Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Outro Mané
Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
Todos os Manés
Está inaugurada a Noite dos Dois Mané!
(setembro de 2005)
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