Topei com o primeiro livro de Ambrose Bierce (1842-1913) há muito tempo, numa banquinha que vendia livros usados no Viaduto do Chá. Bastou uma folheada para que se tornasse um de meus escritores favoritos. Guardo até hoje o remendado volume da Artenova, com uma seleção de fábulas satíricas e trechos do Dicionário do Diabo. Um de seus admiradores brasileiros foi Millor Fernandes, que se inspirou nas Fábulas Fantásticas biercianas para escrever as suas Fábulas Fabulosas.
Nascido em Ohio, EUA, passou a infância em situação de extrema pobreza. Lutou na Guerra da Secessão por quatro anos. Seu pessimismo crônico acentuou-se, tingindo-se de ironia e sarcasmo contra todas as instituições. Tornou-se jornalista na Califórnia, e granjeou muitos inimigos esculhambando com regularidade a Justiça, o Estado, os exércitos, os comerciantes e os editores de livros.
Seus contos estão presentes em todas as antologias da melhor literatura americana. Desapareceu aos 71 anos, durante uma viagem ao México, em plena revolução zapatista. Nesse ano bicudo de 2015, várias vezes lembrei de seus escritos. Em homenagem à nossa altíssima Justiça e seus digníssimos mandatários, aqui vão três exemplos do humor ácido de Ambrose Bierce. E feliz 2016 !
PETIÇÃO DEFEITUOSA
Um Juiz adjunto da Corte Suprema estava sentado à margem do rio quando chegou um viajante e disse:
“Quero atravessar. Será legal usar este bote?”
“Será”, foi a resposta, “o bote é meu”.
O Viajante agradeceu e, lançando o bote na água, embarcou e remou para longe. Mas o bote afundou e ele se afogou. “Homem desalmado!”, disse um Espectador Indignado. “Por que não lhe disseste que o bote estava furado?”
Respondeu o grande jurista: “A questão do estado do barco não foi trazida à minha consideração”.
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O JUIZ E O ACUSADOR
Eminente Juiz da Corte Suprema de Gowk foi acusado de ter obtido a nomeação por fraude.
“Tu divagas”, disse ele ao Acusador, “é de pouca importância como obtive o cargo; só importa como o tenho usado.”
“Confesso”, disse o Acusador, “que em comparação com a forma canalha como te conduzes no tribunal a forma canalha como lá chegaste parece uma bagatela.”
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UM RÁPIDO ACORDO
“Excelência”, disse o Advogado, levantando-se, “qual é a atual situação desse caso, em que ponto está?”
“prolatei sentença sobre o legatário residual pelo testamento”, disse o Juiz; “lancei às custas contra os litigantes, decidi todas as questões relativas a honorários e outras; enfim, os bens em litígio foram dispostos, com todas as controvérsias, disputas, mal-entendidos e diferenças de opinião que lhe dizem respeito.”
“Ah, sim, perfeitamente”, disse o Advogado, pensativo, “estamos progredindo”.
“Progredindo?”, ecoou o Juiz. “ora, meu senhor, o assunto está concluído!”
“Exatamente, exatamente. Teria que estar concluído para dar relevância à moção que irei apresentar. Excelência, pleiteio que a sentença desta Corte seja suspensa e o caso reaberto.”
“Sob que fundamento, senhor?” perguntou o Juiz, surpreso.
“Sob fundamento de que, depois de pagos todos os honorários e custas do litígio, e de todas as taxas sobre os bens, algo ainda restou.”
“Deve ter havido erro”, disse Sua excelência, pensativamente. “A Corte talvez tenha subestimado o valor dos bens. A moção é aceita para consideração.”
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