Arquivo para setembro \20\-02:00 2021

As Aparências

Escrevo contos há um bom par de décadas, embora só tenha publicado em antologias esparsas e alguns sites literários (portanto, obscuros e desconhecidos da grande maioria).

Sinceramente, nunca me animei muito em publicar um livro de contos. Publiquei um romance em 2016, Terno de Reis, que foi bem recebido num círculo restrito de amigos. Enquanto rascunhava causos e histórias, tive a ideia de escrever um romance de contos. Uma trama de fundo, onde cada capítulo fosse entremeado por um conto. Não se tratava de nenhuma invenção revolucionária, uma vez que desde as 1001 Noites isso não é novidade: histórias dentro da história.

Para resumir, um jovem ator se envolve com uma professora de literatura, e vai mostrando para ela sua produção. O toque de pimenta da narrativa era o romance que emergia entre um rapaz de vinte e poucos anos e uma mulher próxima dos quarenta. Ordenei os contos que estavam na gaveta em uma certa ordem, mexi em um ou outro, escrevi dois novos. As coisas se encaixavam. A professora fazia certas críticas, e o aluno tentava corrigir. Brigavam, e isso se refletia no próximo conto. Passavam um fim de semana perfeito na praia, e isso resultava em novo conto.

Ficou interessante, mas resultou em mais de 300 páginas. Em tempos de crise, recessão editorial, custos de gráfica proibitivos e política cultural sombria e obscurantista, um escritor quase desconhecido lançar um romance com tal pretensão me pareceu loucura. Minhas primeiras-leitoras se dividiram: minha sogra, Maria Alice, adorou a novela, achou que os contos atrapalhavam. Minha filha disse que final feliz era um ato ousado, nos dias de hoje. Minha amiga (e editora) Sandra Abrano se declarou fã dos contos.

Após conversa com os meus editores, resolvi lançar um livro apenas com os contos. Uma espécie de antologia pessoal dos últimos 20 anos. Alguns, até premiados, ficaram de fora. Um conto de ficção científica, por exemplo, não se encaixava. Fica pro próximo volume, se houver. Semana que vem conto mais um pouquinho das peripécias de montar um livro de contos, e o orgulho de ter uma capa de Lenio Braga e um prefácio de Edmar Monteiro Filho. A editora Penalux já colocou à venda através de seu site, ,(http://www.editorapenalux.com.br/catalogo…/as-aparencias). Aliás, visite o catálogo da editora, tem muita coisa interessante!

A Justiça e a boiada

As artes plásticas, historicamente, portam características narrativas muito específicas, como a capacidade de tocar de forma sensível corações e mentes. Por “mente” entenda-se a cultura, a inteligência, a capacidade de interpretar símbolos e mensagens ocultas. O antigo adágio de que uma imagem vale por mil palavras nada mais é que uma definição popular desta qualidade.

Mais velha que a palavra, a imagem está presente desde os primórdios da humanidade, como guardam testemunho cavernas e rochedos em todo o mundo. Mesmo após a revolução de Gutemberg, continuou tendo espaço em todo tipo de publicação, através de gravuras, desenhos e pinturas. Com o advento da fotografia, abriu um novo campo de atuação simbólica, que só se ampliou na era digital.

A velha charge, aquele desenho-comentário sobre situações ou pessoas, geralmente com conteúdo crítico ou irônico, surgida em meados do século XVIII e indispensável a partir da popularização da imprensa escrita, continua presente e forte em todas as redes sociais. E é sobre uma delas que me detenho, após um 7 de setembro de tantas expectativas e tanto fiasco.

Marcos Ravelli, que assina suas charges como Quinho, tem produzido peças antológicas. Aliando economia de traços com humor atento e refinado, é um artista com pleno domínio dos recursos narrativos da imagem. Atentem para a capacidade de síntese da ilustração acima, divulgada em vários veículos nos últimos dias.

Quinho coloca com central a figura da Justiça. Não uma justiça qualquer, mas aquela representada pela escultura de Alfredo Ceschiatti, que ornamenta o Ministério da Justiça, em Brasília, reconhecível pela cabeça singular, com a parte superior coberta pela tradicional venda (“A justiça é cega”). A estátua original está placidamente sentada, com a espada sobre as coxas. Na obra de Quinho, a estátua se levanta, empunhando a espada em atitude de defesa. No outro braço, segura um pano vermelho, que imediatamente nos remete à figura de um toureiro.

Completando a analogia, vemos a sombra de um enorme touro, reconhecível pelos chifres, projetar-se sobre a personagem central. Ao lado, várias outras sombras simbolizam o gado, a boiada que acompanha o líder, o chifrudo-mor.

É perfeita a representação do embate atual entre os poderes, no Brasil. De um lado a Justiça, poder absoluto – que não pode ser confundida com alguns de seus representantes terrenos, por vezes covardes e caricaturais -, de outro o ocupante do Executivo, insuflador de golpes e ataques à democracia.

Algum distraído poderá argumentar que falta nesse embate a presença do povo, das organizações sociais e populares que também estão na rua defendendo o Estado de Direito. Bem, voltemos ao pano vermelho. A cor da fraternidade, conforme os princípios da revolução francesa, pode também ser entendida como uma provocação a uma das frases favoritas dos ativistas de direita: “nossa bandeira jamais será vermelha”.

Mas quando a Justiça empunha uma bandeira vermelha para enfrentar os desvarios totalitaristas do presidente e seus sequazes, abre-se caminho para duas linhas de interpretação. Ou a Justiça usa o povo para defender seus próceres, ou, o que é mais provável, precisa do povo para enfrentar os ataques aos seus princípios. Partindo de um humanista como Quinho, optamos sem dúvida pela segunda hipótese, embora a ironia da primeira não possa ser totalmente descartada.

Nesse retrato sintético do momento convulso que vivemos, a bandeira precisa ser vermelha (também de forma simbólica, claro), uma vez que a boiada ameaçadora usurpou a tradicional verde-amarela. Tanto para preservar o que nos resta de Justiça, como para reforçar a necessidade da fraternité, driblando divergências políticas eventuais, é com ela que vamos superar a crise e restaurar a plena democracia, da qual experimentamos o gosto não faz tanto tempo assim.


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