Arquivo para fevereiro \26\-02:00 2023

Cultura engarrafada

Um lançamento literário de 2022 delimita várias áreas de intersecção entre sociologia, história, cultura popular e folclore. Da Botica ao Boteco, da jornalista Néli Pereira, é um ensaio dedicado a “plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira”. Editada com capricho pela Companhia de Mesa (um selo da Editora Schwarcz) em 2022, a autora se propõe a investigar as relações entre a farmácia dos povos originários, dos europeus e dos africanos, ligados a tradições ancestrais e de fundo religioso – as tradicionais garrafadas – e o surgimento de bebidas laicas baseadas nessas misturas, os famosos licores e xaropes alcoólicos.

Em princípio, isso seria apenas um livro sobre coquetéis com ervas, cascas e raízes. Mas o que observamos é que a autora realiza um minucioso trabalho de pesquisa sobre a origem de várias bebidas famosas e globalizadas que estão lastreadas em receitas ancestrais, como licores famosos, bitters, amaros, gins e vermutes. Muitas vezes, essas misturas de ervas e álcool foram criadas por médicos em expedições europeias de colonização nos novos mundos, aproveitando-se de informações das culturas locais. Um naturalista como Guilherme Piso (William Pies) compilou e publicou, em 1648, uma Medicinae brasiliensis com 110 plantas utilizadas aqui pelos indígenas.  Von Martius escreveu, em 1844, seu Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios brasileiros, onde, botânico que era, descreveu várias espécies hoje populares em qualquer bar, como catuaba, carqueja ou umburana.

Néli Pereira abre seu livro com uma epígrafe de Guimarães Rosa e uma oportuna citação ao trabalho da pesquisadora Maria Thereza Lemos de Arruda Camargo, uma etnofarmacobotânica. Essa especialidade “é um desdobramento da etnobotânica e visa resgatar de grupos humanos os saberes sobre as plantas medicinais e seus usos a partir de remédios populares simples e compostos e as respectivas indicações terapêuticas”.

Isso significa não apenas ir atrás de tribos indígenas na Amazônia, mas também pesquisar terreiros, quilombos e bancas de feiras rurais, conversar com benzedeiras e raizeiras, investigar o que vem da botica e vem parar no boteco, com todo o contexto cultural que o cerca.

Parece familiar? Claro, estamos no terreno de antropólogos e sociólogos como Câmara Cascudo (História da Alimentação no Brasil), ou Gilberto Freyre, que dedica um  belo capítulo de sua obra mais divulgada, Casa Grande e Senzala, à descrição e análise das comidas e bebidas do Brasil colonial. Mais tarde, escreveria um volume sobre o Açúcar e toda a cultura criada em torno da cana.

A autora de Da Botica ao Boteco bebe de forma respeitosa destas fontes, e também ousa criar ficcionalmente encontros com feiticeiras, pajés, curandeiros e monges europeus em sua busca pelas misturas de ervas com álcool. Informação necessária: não apenas é uma pesquisadora, mas coloca em prática o que aprendeu em um bar-ateliê de coquetelaria de São Paulo, o Zebra. Elabora cartas de drinques e compartilha no livro receitas clássicas e autorais. É mestra em estudos culturais latino-americanos pela University of London, tem vários artigos jornalísticos publicados sobre o tema.

Existe uma saudável tendência em livros sobre comidas ou bebidas a pesquisar fontes e origens históricas, criando uma sociologia toda própria. Para um leigo, como o autor dessas linhas, isso pode ora soar como um verniz acadêmico chancelador de qualidade, ora como uma real intenção de buscar as raízes culturais de hábitos, costumes e fazeres. Quando Néli Pereira fala de jurubeba, butiá, sassafrás ou mastruz, quando descreve seus encontros com mestres e mestras das garrafadas numa aldeia indígena ou no mercado de Ver-O-Peso, quando cita sambas de Ney Lopes ou Arlindo Cruz, está demonstrando o quanto de cultura popular é destilada até chegar aos bares da moda. Vai da pesquisa, do aprendizado com livros e pessoas, à experiência iluminadora e criativa, de forma fluente e original.

Num mundo ideal, saberíamos de onde vem e como foi feito aquele drinque que tanto apreciamos, não importa a origem. Isso seria cultura. No mundo acadêmico, suposto repositório de toda a cultura formal, seria ideal retomarmos em doses imoderadas o projeto de Freyre, Cascudo e outros pesquisadores, nunca deixando de lado os sabores, cores e perfumes que estão presentes na formação de qualquer povo, qualquer nação.  

Socorro Lira, poeta e compositora maior

Ouvir Socorro Lira é sempre um alumbramento. Para uns, revelação. Para outros, o reencontro prazeroso com o talento radiante. A artista, a cada disco, multiplica parcerias, explora novas trilhas, amplia seu repertório sem cair na repetição.

Quando lançou seu primeiro CD, Cantigas, em 2011, já era poeta publicada e agitadora cultural. De lá pra cá, esparramou sua inquietação artística em várias direções. Boa violonista, refinou cada vez mais sua performance como intérprete, ancorada numa já vasta produção autoral. Escreveu um romance, Falar de Meus Amores Invisíveis, lançado em 2020, sem interromper a produção poética e musical.

E que cantora, que intérprete! Nascida na Paraíba, andou e cantou por esse país, e soube ouvir e incorporar os sotaques e perfumes de cada região, sem perder o acento nativo. Seu trabalho Amazônia Entre Águas e Desertos (2015), registrado em CD e DVD, é obrigatório para todos que amam a música brasileira fora do eixo urbano do (ex)sul-maravilha. Conjuntos de canções mais introspectivas, como o Singelo Tratado Sobre a Delicadeza (2012), mantém o frescor dos primeiros discos adicionando cada vez mais doses de sabedoria técnica e musical. E quando fala do sertão (Os Sertões do Mundo, 2014), é uma boniteza só! Gravou CDs dedicados a Zé do Norte e Luiz Gonzaga que merecem ser muito mais ouvidos e divulgados.

A cada disco, a poeta, cantora e compositora desvela novas facetas e reabre nossos olhos (e ouvidos) para um Brasil poético e musical pouco conhecido. Ao musicar poemas de autoras como a maranhense Maria Firmina dos Reis (1822/1917), primeira escritora negra brasileira, ou a paulista Ruth Guimarães (1920/2014), Socorro Lira se coloca também como militante, porta-voz de tantas mulheres talentosas ignoradas pela cultura de massa e de macho.

Ao criar, junto com Elifas Andreato (1946/2022), o Prêmio Grão de Música (www.premiograodemusica.com.br), do qual é diretora artística, explicitou a intenção de valorizar os talentos regionais e as múltiplas formas da música popular brasileira. O que não a impede de lançar seu fio de teia para parceiros internacionais, como prova seu novo disco, Dharma, lançado no dia 30 de dezembro de 2022, que pode ser ouvido em todas as plataformas digitais.

Como não vibrar com tantas delícias? Como El Amor, canção autoral, foi gravada em Cuba com músicos locais, com produção e arranjo de Swami Jr. E o que dizer de parcerias com Chico César (Deusa Livre), Ná Ozzetti (Gaza Jacarezinho), Zélia Duncan (E Você Chega Tarde), Cátia de França (Em Resposta), Ana Costa (Não Acabou o Assunto), o violeiro Ricardo Vignini (Dharma), entre outras? E a fantástica criação com o escritor angolano José Eduardo Agualusa, a misteriosa canção Lilith? Coisa de se ouvir uma, duas, dez, cem vezes, sem cansar. Como não se arrepiar ouvindo versos tão urgentes e universais como “Eu não me calo/ falo não/ falo abaixo os generais”, da canção-título do disco?

Socorro Lira, forte e pungente, doce e instigante, é uma das mais importantes compositoras brasileiras da atualidade. Não ouviu ainda? Corra, não sabe o que está perdendo!

(foto: Iza Guedes)


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