Arquivo para dezembro \17\-02:00 2013

Ficção, mas não futurista

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Como a maioria das pessoas, saí encantado do filme Gravidade, de Alfonso Cuarón. Com um fiapo de história, o diretor consegue manter a tensão emocional, calibrando com perícia os eventos que tornarão a vida de Sandra Bullock bastante atormentada.

É claro que os efeitos especiais são parte fundamental do show, uma vez que o filme se passa na estratosfera. Astronautas experientes concordam que é o filme que mais fielmente reproduz o cenário e as condições de trabalho espaciais. Não deixaram de apontar alguns disparates, claro, como o fato de Sandra, a doutora Ryan, pilotar uma nave chinesa sem nunca ter entrado numa antes…

Conversando sobre Gravidade, dias depois, me ocorreu uma ideia curiosa: o filme não é de ficção científica! A história se passa em nossa época, com máquinas e equipamentos existentes, em situações já conhecidas pelo homem. A única coisa, digamos, incomum, é o fato de se desenrolar no espaço, lugar pouco frequentado por nós.

Não chamamos de ficção científica um filme onde um grupo de pessoas tenta escapar de um submarino encalhado no fundo do mar. Ou de um transatlântico emborcado por um furacão. No máximo, é um disaster movie. Gravidade segue o mesmo esquema, com um elenco reduzido ao mínimo. No futuro, será classificado como um filme realista, na linha de Apolo XIII, de Ron Howard. A única diferença é que este é baseado num incidente real, enquanto Gravidade cria um acidente hipotético. Mas perfeitamente plausível, se considerarmos que há hoje no espaço milhares de destroços em órbita, pondo em risco crescente a integridade de satélites, naves e astronautas.

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Nada disso tira os atrativos de Gravidade, claro. O 3D funciona na medida certa, a ameaça real dos detritos espaciais é assustadora, Clooney transmite impressionante tranquilidade, Bullock está no melhor papel de sua carreira. Cuarón e sua equipe devem colocar alguns Oscars no currículo, em 2014, e não só de efeitos especiais. Vale o ingresso!

Gilvan Samico, mestre da xilogravura

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A morte de Gilvan Samico, no dia 25 de novembro de 2013, mexeu mais comigo do que deveria. Afinal, não o conheci pessoalmente, nem sequer tenho uma obra sua nas paredes de casa.  Mas, por uma série de motivos, Samico é um dos artistas brasileiros que mais admiro, pela coerência, refinamento e fidelidade ao projeto estético que escolheu.

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Dedicar-se à xilogravura como forma de expressão, no Brasil,  é uma opção temerária. Mestres como Osvaldo Goeldi e Lívio Abramo provaram que era possível dialogar com a arte moderna usando um suporte tido como primitivo. Aluno de ambos, Samico desenvolveu uma linguagem própria, com forte influência dos artistas populares nordestinos. Graças a essa escolha conquistou reconhecimento internacional, tendo obras em museus europeus e americanos, além de ser premiado na Bienal de Veneza.

Quinteto Armorial

O ponto de virada em sua vida foi o convite de Ariano Suassuna para que participasse do Movimento Armorial, em 1971. E foi então que Samico entrou na minha vida. As fantásticas capas do Quinteto Armorial (de onde surgiu o extraordinário Antônio Nóbrega) foram, de fato, as primeiras obras do artista que eu tive em mãos. E a profunda relação entre as imagens e a música que eu ouvia era evidente: uma ligação viva, ao mesmo tempo cerebral e emotiva, ancestral e moderna, no sentido de reelaborar arquétipos.

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            Numa era em que a tecnologia, as novas mídias, o computador e suas manipulações digitais fazem a cabeça de todo aspirante a artista, debruçar-se sobre um pedaço de madeira e cavocar, cortar, burilar, descascar e colorir, como se fazia há centenas de anos, parece anacrônico. Artistas da geração seguinte, como Rubens Grilo, apontaram novos caminhos expressivos para a técnica ancestral da xilo, dando-lhe conteúdo político e abrindo espaço na mídia impressa.

Xilo Samico

Gilvan Samico é de outra estirpe. Sintonizado com os princípios armoriais, mergulhou nos mitos, lendas e histórias da cultura popular nordestina, a chamada literatura de cordel. Personagens bíblicos se juntam a entidades indígenas e caboclas, em justaposições de extraordinária beleza. O uso de cores chapadas, típico das gravuras populares, é sabiamente dosado, provocando alumbramentos no meio do tradicional branco-e-preto.

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Samico produziu pouco. Dizem que elaborava uma gravura por ano, nas últimas décadas. Nos último fim de semana ouvi o Quinteto Armorial (e também a Orquestra), e fiquei um longo tempo contemplando as imagens do mestre. É mais um pilar da cultura brasileira que se despede, restando a nós o espanto perante a banalidade vulgar da mídia globalizada e seus infinitos lugares-comuns.

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          Um brinde, mestre Samico!


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