Arquivo para janeiro \28\-02:00 2022

Microconto e Pandemia

A invenção da história curta, ao contrário do que alguns pensam, é milenar. As fábulas da antiguidade, as piadas de todos os povos e culturas, os limericks, os pequenos “causos”, todos são herdeiros de uma tradição ancestral, oral, onde uma história é contada rapidamente, podendo ou não conter um fundo moral, satírico ou meramente descritivo.

Vários escritores exercitaram seu poder de síntese criando micro contos de uma ou duas linhas. Um exemplo famoso é o do escritor hondurenho (radicado na Guatemala) Augusto Monterroso (1921/2003):

Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.

Especialista em minicontos e aforismas, Monterroso procurava criar um clima e sugerir uma situação, contando com a imaginação do leitor.

Sempre lembrado é o exemplo de Hemingway (1899/1961), que sendo autor de romances caudalosos, escreveu (ou relatou uma placa numa janela, segundo ele) um drama mais curto ainda:

À venda: sapatos de bebê, nunca usados.

Os americanos chamam isso de flash fiction. Como em todo gênero – ou sub gênero -, há poucos criadores, alguns mestres e muitos diluidores. Um processo semelhante ao que ocorre com o haiku, ou haikai. É impressionante a quantidade de pessoas que acham que enfileirar palavras em três linhas é um haiku. Assim como uma piada, um caso cotidiano ou um comentário sobre banalidades não é um mini conto, nem sequer uma micro crônica.

Aí entra o X do problema, o “mistério” da literatura. Um indivíduo dotado de certo espírito poderia até emitir frases parecidas com as de Monterroso ou Hemingway, mas só isso não basta para caracterizá-lo como escritor, criador ou gênio. É como um sujeito acertar um ovo frito no ponto e se julgar um cozinheiro, ou fazer um belo rabisco e pensar que é um artista plástico. Todos têm direito de fazer belos rabiscos de vez em quando, ou até mesmo de criar uma boa frase. Ou pelo menos o direito de tentar.

O mini conto, como acabou sendo definido no Brasil, também não é invenção da internet, embora tenha encontrado aqui terreno propício para se multiplicar. Escritores como Dalton Trevisan já experimentavam a forma na década de 80. O paranaense lançou um volume de micro contos, Ah, É? em 1994. Em revistas e jornais, muitos escritores exercitaram o econômico formato, muitas vezes forçados pelo espaço exíguo.

O sempre ligado Marcelino Freire desafiou cem escritores a escrever obras com no máximo 50 letras. O resultado foi o volume Os cem menores contos do século, publicado em 2004.  Nomes consagrados toparam o desafio, mas a peneira se repete: há muito cascalho pra pouco diamante.

A internet abriga vários sites e blogs dedicados ao micro gênero. Reverberam o velho McLuhan, que antecipou essa relação entre forma e conteúdo na sua famosa fórmula “o meio é a mensagem”. A urgência da informação, a velocidade da leitura, a inadequação de textos longos à tela do celular, a vertiginosa espiral de informação que se acelera com a evolução da tecnologia, tudo isso proporciona um terreno fértil para a germinação desse capim literário. Não são árvores, e nem pretendem ser, mas cumprem função essencial no ecossistema literário do século XXI.

Histórias curtas e bem contadas não precisam ser tão radicais a ponto de serem resumidas em uma linha. Mini contos de meia página, de uma ou duas laudas, ampliam as possibilidades do “golpe certeiro”, como dizia Cortázar. Aliás, ele próprio um cultor da forma curta, com seus cronópios, famas e esperanças.

Curiosamente, a pandemia provocou uma proliferação de mini contistas na rede. Digo “curiosamente” porque era de se supor que o recesso obrigatório motivasse as pessoas a escreverem coisas mais longas, trabalhadas, reflexivas. Não que tamanho seja documento, em literatura. Sabemos que um romance de 400 páginas pode ter a profundidade de uma poça d’água, e um verso ser mais profundo que um poço artesiano. Apesar disso, era razoável imaginar que o período de clausura permitisse mergulhos mais amplos e profundos no exercício literário. Creio até que isso ocorreu, com alguns casos. 

Porém, muita gente que se contentava em contar casos no bar, no pátio da escola ou no churrasco da turma passou a “se exprimir”, digamos assim, na www. Estão confinados, mas através das brechas permanentes e onipresentes da internet destilam sua “criatividade” em poucas linhas, possíveis de serem lidas no ônibus, no trem, na sala de espera do consultório, ou até entre um comercial e outro da TV.

Os que chegarem ao final do século XXI poderão apreciar melhor o que resultou desse processo. Como envolvido no enredo, e movido por curiosidade permanente, dediquei algum tempo a acompanhar a produção dos cultores dos pequenos formatos. Há boas pepitas, como a obra de Sonia Nabarrete, escritora de perfil nelsonrodrigueano (mas feminista!), que aborda os relacionamentos durante a pandemia com um viés erótico e satírico. Publicados em 2021 pela editora Feminas em dois pequenos volumes (“Enquanto a gente estava entre parênteses…” e “O mundo parou, mas a gente não desceu”) os mini contos delineiam uma série de comportamentos confinados, formando um mosaico de taras, desejos e frustrações, com pitadas de crítica social e política.

Hoje, quando pesquisamos o cotidiano do início do século XX, apontamos a lupa para cronistas como João do Rio, Machado de Assis, Lima Barreto e alguns outros. Daqui a cem anos, se ainda houver vida e cultura como definimos hoje, provavelmente os cientistas/computadores estarão pesquisando vídeos, fotos e posts sobre essa fase terrível causada pelo Covid-19 e suas mutações, algo equivalente à Primeira Guerra Mundial no século anterior. Se sobrar algum espaço para a literatura, haverá relatos substanciosos e uma miríade de micro ou mini contos ou crônicas virtuais. Certamente Sonia Nabarrete estará presente como atenta investigadora da psique humana, sem nunca ter abdicado da risada e da ironia para retratar de forma aguda o purgatório pelo qual passamos.

Ilustração: gravura de Lenio Braga.

(Publicado originalmente em A Terra é Redonda)

O kuarup de Rita Carelli

O romance de estreia de Rita Carelli, Terrapreta (Editora 34, 2021), insere uma inovadora visão na literatura brasileira contemporânea. Com elementos nitidamente autobiográficos, a autora, nascida em 1984, relembra e reelabora um mergulho existencial no meio dos povos do Alto Xingu.

A adolescente Ana, que perde a mãe em São Paulo e é obrigada a acompanhar o pai, arqueólogo, no meio de um território indígena, se coloca na zona de intersecção entre vários mundos conflitantes. A transição da infância para a puberdade, a tímida e difícil aproximação entre culturas, crenças e modos diferentes de conduzir a vida, o estabelecimento de relações de amizade e afeto que flertam com o surgimento do desejo sexual.

O que um branco como eu só pode definir com palavras cruas, como no parágrafo acima, é retrabalhado por Rita Carelli de forma confessional, sensorial, sem nunca perder o fio da narrativa. De maneira engenhosa mescla tempos distintos, com ações que se passam em São Paulo, Xingu e Paris, onde Ana vai estudar e de onde retorna para uma reconexão com os liames que a prendem, buscando desatar os nós.

Embora seja seu primeiro romance, Rita Carelli conhece os segredos da escrita. Autora de livros infanto-juvenis que também abarcam o universo mitológico indígena, é também realizadora de livros-filmes como Um dia na Aldeia (2018). Seu pai, Vincent Carelli, é um antropólogo e documentarista conhecido pelo seu trabalho junto com povos indígenas brasileiros.

Essa carga biográfica poderia conduzir o romance de Rita a um mero relato “de formação”, com sabor antropológico, mas sem criação autêntica. No entanto, em Terrapreta nos deparamos com uma narrativa, ora realista, ora poética, onde as lendas e tradições vão se entremeando de tal forma com a história que fluem com a naturalidade de um igarapé em meio à floresta.

A água assume um papel crucial em diversos momentos. O ritual dos banhos, a pesca, os diálogos à beira do rio, as lágrimas, a natureza líquida das mulheres, sintetizada no quase epílogo “Leito do rio”. Água é vida, fogo pode ser morte, para os povos da floresta. Num movimento contrário ao dos invasores brancos, que impõem seus valores e sua soja transgênica, Ana e seu pai são porosos, absorvem a cultura que lhes é ensinada, e lentamente se transformam.  

Longe do romantismo de José de Alencar ou do viés político de Antonio Callado (Quarup), Rita Carelli constrói em Terrapreta uma narrativa onde o sufocamento dos territórios e povos indígenas emerge de forma clara no final, quando a protagonista volta de Paris para reencontrar sua “família” e fazer seu Kuarup pessoal. 

A autora adverte em nota que os personagens são fictícios, e que criou um “amálgama cultural” do Alto Xingu. Até as palavras indígenas são inventadas, declara. No entanto, intuímos que a cosmogonia relatada é real, assim como os costumes e rituais. A cerimônia do Kuarup tem papel fundamental no romance, em seu significado básico: enterrar de vez, simbolicamente, os mortos, para que eles (e os vivos) possam ser livres da dor, da tristeza e da saudade.

Se em alguns momentos a descrição de mitos e cerimônias possa parecer didático, ao fim da leitura chegamos à conclusão de que o romance seria impossível sem esse recurso. O livro traz uma orelha elogiosa de Ailton Krenak, o que não é pouco. E Rita Carelli, que criou aqui uma obra sem paralelos, demonstra domínio narrativo e imprime veracidade em cada parágrafo, credenciais que lhe permitem se aventurar por novos caminhos ficcionais. Boa leitura para iluminar tempos sombrios, onde o extermínio de povos nativos, de destruição de florestas e envenenamento de rios, deixou de ser uma ameaça para ser realidade.

(Publicado originalmente em A Terra É Redonda).


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