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Um acorde dissonante

A maneira como é produzida a literatura contemporânea é indissociável da era midiática em que vivemos. O fato de podermos, desde o final do século XX, ter ao alcance dos dedos e dos olhos a maior biblioteca de todos os tempos, a mais babélica profusão de estilos, o mais instantâneo catálogo de consultas bibliográficas e o acesso imediato à produção artística de todos os cantos do planeta faz com que o ato de escrever esteja cada vez mais permeado por uma quantidade tão grande de influências que muitas vezes dificilmente serão detectadas e verificadas.

O Aleph borgiano hoje aparece à nossa frente quando ligamos a tela do computador. Obviamente, isso não nos transforma em magos omniscientes, pois abarcar tanto conhecimento provavelmente nos enlouqueceria. Os labirintos podem virar pesadelos. Novos escritores navegam em diversas correntezas estilísticas que podem levá-los ao sorvedouro desse oceano, se não souberem manejar com perícia o leme da criação.

Edmar Monteiro Filho é um autor brasileiro contemporâneo que se atém à norma culta, às formas narrativas clássicas, mas oferece ao leitor uma viagem para outras dimensões, além da superfície da escrita, onde o manejo de referências estéticas e vivenciais se dá de forma inteligente e perturbadora. Autor premiado de contos que estarão presentes em qualquer antologia dessa primeira metade do século, uma de suas façanhas foi entabular um diálogo fascinante com a obra de M. C. Escher (Atlas do Impossível, Penalux, 2017), criando ficções que espelham ou desenvolvem – nunca de maneira submissa ou realista – as ideias propostas pelo genial holandês.

Seu novo livro, O Acorde Insensível de Deus (Laranja Original, 2022), não tem a unidade radical do Atlas, mas reafirma suas qualidades de prosador. Pode ser classificado como um livro de contos, embora a história que empresta o título ao volume tenha 60 páginas. Um funcionário público de Amparo, responsável pelo Museu da cidade, se vê envolvido com um boato de que quadros teriam sumido da Câmara Municipal. Ao mesmo tempo, escarafuncha velhos documentos e cartas de mais de um século, e repassa sua tensa relação com o filho.

Outro conto quase-novela é Retrato de Rashmila, com quase 40 páginas, onde o clima oriental da narrativa nos remete a Borges e seus ardilosos dilemas existenciais. A competência artesanal da escrita de Edmar Pereira Filho nos envolve sutilmente, e as palavras parecem exalar perfume de sândalo e incenso nepalês.

Mas é nas narrativas curtas que o talento do autor faísca. Do clima cortazariano de O Funcionamento das Ampulhetas, passando pela crueza social de Viúvas, onde um vendedor de montepios busca clientes nos subúrbios, até a concisão suicida do narrador de Ralo (duas páginas!) e o purgatório emocional de uma consulta em Medicina Preventiva

A literatura de Edmar Monteiro Filho faz um contraponto com a experimentação linguística tão em voga – escrever de forma livre, sem regras gramaticais ortodoxas – e comprova que ainda há muitas possibilidades narrativas a serem exploradas utilizando ferramentas mais, digamos, clássicas. E este acaba sendo um dos grandes prazeres que um leitor pode encontrar na literatura brasileira contemporânea: a possibilidade de conviver com estilos opostos, de apreciar raps, sambas e sinfonias ficcionais, de lamber com os olhos quadros figurativos e abstratos, de degustar feijoadas, sushis e sopas de letrinhas digitais, sem ficar preso ao arroz-com-feijão cotidiano.  

(O Acorde Insensível de Deus, editora Laranja Original, 2022, 171 p.)

Movidos pela angústia

Passagem invisívelChico Lopes é escritor prolífico, com vários títulos publicados. Contista consagrado, experimentou também o romance, a poesia, a crônica e a crítica literária e cinematográfica.

Um dado curioso de sua biografia é o fato de ter nascido e morado em pequenas cidades do interior, como Novo Horizonte, Brotas ou Poços de Caldas. Isso não o impediu de acumular um conhecimento cosmopolita, espelhado principalmente em sua atividade crítica. Por outro lado, é determinante do universo onde seus personagens transitam, asfixiados por horizontes estreitos, ruas escuras, bares decadentes e certo pessimismo em relação à vida.

Chico já confessou, em entrevista, que sua literatura fala de perdedores, de marginalizados. Mesmo que vivesse numa megalópole, é bem provável que o enfoque fosse o mesmo, pois esta é uma postura estética e filosófica em relação ao mundo, que já rendeu vários clássicos da literatura universal.

A escrita de Chico Lopes não usa truques moderninhos, não depende de aparelhos eletrônicos, não é feita para consumo rápido e descartável. Em seus contos, desde que publicou seu primeiro livro, se aventura pelos becos mais tortuosos da alma humana, pisando em terreno onde o sórdido e o sublime podem germinar lado a lado. Leu os russos, os franceses, leu Machado e Graciliano, e destilou desses mestres a essência que anima suas narrativas.

A Passagem Invisível (Laranja Original, 2019) reúne 8 contos, sendo o último quase uma novela, com 46 páginas. Histórias densas e tensas, onde a violência subjacente às vezes explode de forma sangrenta, seja através de ciúme incontrolável, de revolta surda contra o destino ou de violência institucional.

Exemplo soberbo desta última situação é o admirável conto White Christmas, onde um homem é perseguido por dois policiais pelo “abominável” gesto de ter urinado numa árvore. As consequências deste ato atingem proporções inusitadas, num crescendo angustiante que nada fica a dever aos melhores autores de suspense, com um desfecho de grande impacto, que se iguala aos melhores momentos de um Rubem Fonseca.

Neste, como em outros contos, há algo também de Kafka. Não se procura apenas distrair o leitor com uma boa história, mas inquietá-lo, num sentido mais existencial. Os personagens são oprimidos pelas circunstâncias, pelo medo, pela angústia, pelo abandono, e é na exploração destas situações que a literatura de Chico Lopes cresce, ocupando um nicho incontornável no panorama da literatura brasileira contemporânea.


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