Embora seja reconhecido como um dos grandes escritores brasileiros, podemos afirmar que boa parte da obra de Afonso Henriques de Lima Barreto não está ao alcance do leitor contemporâneo. Por este motivo, a publicação do volume A Crônica Militante (Expressão Popular, 2016) merece aplausos e uma ampla divulgação.
É claro que nos “tempos sombrios” em que vivemos (como bem definiu Raduan Nassar), não podemos contar com a chamada grande imprensa para isso. O pacto político-judicial-midiático que depôs um governo legitimamente eleito não pode ver com bons olhos os textos de um escritor anarco-socialista que denuncia as mazelas do capitalismo, mesmo que tenham sido escritos há quase um século.
Antes de morrer, em 1922, Lima Barreto deixou pronto um volume (Bagatelas), enfeixando crônicas publicadas em várias publicações cariocas. O escritor era crítico ferrenho da mídia oficial e chapa-branca, manifestando preferência por publicações marginais e independentes, anarquistas ou satíricas. Destas, a mais famosa foi a revista Careta, onde o autor de O Homem Que Sabia Javanês publicou sob diversos pseudônimos, a partir de 1915.
Grande parte dos artigos desta coletânea foi escrita durante e após a Primeira Guerra Mundial (1914/1918), e analisa um mundo em convulsão social e política. Barreto escreve contra o racismo, defende a Revolução Russa, critica o imperialismo americano, ironiza os governantes da ocasião, deplora os assassinatos por “honra”, ataca o formalismo acadêmico na imprensa de seu tempo.
De fato, em termos de linguagem, Lima Barreto é um precursor do Modernismo. Sua escrita é direta, muitas vezes irônica, embora pareça pedante a leitores do século XXI a quantidade de citações em francês ou latim de que lança mão. É como se o escritor, mulato, pobre e sem títulos, visto com certa desconfiança por sua militância política (e pelo alcoolismo contumaz), se sentisse na obrigação de “deitar cultura”, demonstrar erudição.
Os organizadores da coletânea (Claudia de Arruda Campos, Enid Yatsuda Frederico, Walnice Nogueira Galvão e Zenir Campos Reis) foram felizes em incluir um esclarecedor ensaio de Astrojildo Pereira, publicado na 2ª edição de Bagatelas. Fundador do Partido Comunista Brasileiro, em 1922, o intelectual ressalta que Lima Barreto não era marxista, nem mesmo tinha uma formação ortodoxa, mas era um humanista eclético que escrevia com “aguda intuição”.
Incomoda apenas, na presente edição, o excesso de notas de rodapé primárias, que fazem o interessado interromper a leitura para ver se há algum significado especial, retomando a leitura irritado com a obviedade. Rodapé pra explicar o que é missa campal, galhofa, recluso, bretão ou imaculado, convenhamos, é fazer pouco da inteligência de qualquer um. Pra compensar, há no final um “elenco de nomes, títulos e lugares” de real valor, contextualizando vários ]personagens e locais citados nas crônicas.
Reler e conhecer de forma mais profunda a obra e o pensamento de Lima Barreto é imprescindível. Homenageado na Flip-2017, o autor de personagens inesquecíveis como Policarpo Quaresma surpreende, em vários sentidos. Desde sua folclórica aversão ao futebol (que considerava uma imitação patética dos ingleses) até a incômoda atualidade de algumas afirmações, como a que emite após participar de um julgamento, de que “A massa dos jurados é de uma mediocridade intelectual pasmosa, mas isto não depõe contra o júri, pois nós sabemos de que força mental são a maioria dos nossos juízes togados.”
Em vários momentos, soa profético: “ A crença no todo poderio do dinheiro, que entre nós se apossou primeiramente de São Paulo (…), vai avassalando todo o Brasil, matando as nossas boas qualidades de desprendimento, de doçura e generosidade, de modéstia nos gostos e nos prazeres, emprestando-nos, em troca, uma dureza com os humildes, com os inferiores, com os desgraçados, com tolas e infundadas superstições de raça, de classe, etc., nesta época de grandes e justas reivindicações, ameaça-nos de morte, ou se não de lutas sangrentas.”
Em outro artigo, vai ao âmago da questão. “Em resumo, porém, se pode dizer que todo o mal está no capitalismo, na insensibilidade moral da burguesia, na sua ganância sem freio de espécie alguma, que só vê na vida dinheiro, dinheiro, morra quem morrer, sofra quem sofrer.”
Lima Barreto tematizou várias vezes esse sentimento (ver o conto A Nova Califórnia, que adaptado para o cinema talvez tenha se tornado o melhor filme da Vera Cruz, Osso, Amor e Papagaios, em 1957) e continua sendo fundamental para entendermos o Brasil.