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Música engajada no século XXI

Há vários conceitos na História que apresentam alterações de significado com o passar do tempo. No campo das artes, é um exercício interessante comparar os ditames do naturalismo literário do século XIX com boa parte da literatura que se pratica no século XXI. O que diferencia um jovem escritor contemporâneo que descreve um mendigo procurando comida no lixo nas calçadas de uma metrópole, e uma cena de Aluísio Azevedo, por exemplo? Filtrando a linguagem da época, a diferença é mínima.

A história do século XX, que é a que ainda mais nos influencia (escrevo esse devaneio em janeiro de 2021), com duas guerras mundiais, ascensão e queda do sonho comunista, emergência de novas potências construídas sobre os alicerces do comunismo (China) e, principalmente, o afloramento político das lutas identitárias que demarcam um novo patamar de percepção política. E, por que não?, estética.

A construção e afirmação do feminismo, do movimento negro (no Ocidente), dos grupos ambientalistas, dos povos indígenas (nas Américas), dos LGBT+, provocou uma boa quantidade de rachaduras no status quo. E gerou uma série de ondas criativas, que vem influenciando gerações.

Quando o rap se tornou um gênero dominante nas rádios e ondas virtuais no início do século XXI, desbancando o rock’n roll que imperava há 50 anos, não pareceu causar grande impacto no mundo acadêmico, jornalístico, literário, teatral, etc. O motivo é simples: os detentores do discurso dominante cresceram ouvindo rock (ou samba, bossa-nova e MPB, no caso brasileiro) e aquilo era “coisa de adolescentes”.

Como sempre ocorre desde a pré-História, os adolescentes cresceram e estão aí, querendo tomar as rédeas do poder. Vivem em um novo mundo, onde o virtual é tão ou mais importante que o real, e que a conexão audiovisual entre grupos antes isolados pode se configurar em um movimento, uma onda, um rolê ou uma rebelião.

Em um pequeno livro* escrito em 1976, o filósofo português José Barata-Moura, de formação marxista, que além de ter sido reitor da Universidade de Lisboa é também compositor e cantor, afirma que “toda canção é política”. Para ele, qualquer produção artística dita alienada ou escapista, seja boa ou ruim (qualidade é outro tema discutível, aliás), “contribui para a organização concreta do viver”, transmitindo ou perpetuando valores que interessam ao sistema. Para ele, o imperialismo exporta música (e cinema, acrescento) que “desempenha um poderoso papel político nos ideais que difunde, nas formas de convívio que patrocina e divulga.” Esse raciocínio aplicado hoje à avalanche de música gospel que invadiu os meios de comunicação, por exemplo, corrobora o papel político destas canções e das igrejas que as promovem.

O rap, ainda que não seja música strictu sensu**, pode ser classificado em grande parte como arte engajada. Critica poderosos, confronta a violência policial, denuncia desigualdades, convoca a união entre pares. No Brasil, muitas vezes aponta para o reconhecimento da raça, da cor negra, as origens afro, embora não se limite a isso.

Hoje é possível ouvir nas redes sociais rap feito por jovens indígenas, cantado em língua nativa. De jovens nascidas na periferia, reivindicando o direito ao corpo. Ou canções pop de artistas defendendo a causa LGBT+. Ou libelos musicais em defesa da natureza, punks atacando o capitalismo predatório, folk singers alertando para os efeitos do aquecimento global ou bandas de garagem lançando invectivas a governos autoritários.

Esse cadinho efervescente de elementos sociais se decanta em novas formas de canção de protesto, de arte engajada, de slogans de guerra. Podem ser denúncia social, propaganda política, hino identitário ou gritos de alerta, sintomas de um mundo em desequilíbrio. Podem embalar passeatas, agregar manos e manas, cutucar valores estabelecidos, defender minorias ou atacar os detentores do poder.

Perante este cenário, só quem não enxerga o próprio tempo pode classificar a música engajada como um fenômeno datado, reminiscência do século XX, que no Brasil costuma ser identificada com a era dos festivais e nomes como Vandré, Taiguara, Chico Buarque, Sérgio Ricardo, Gilberto Gil, Violeta Parra, Victor Jara, Inti-Illimani, Pete Seeger, Bob Dylan, Joan Baez, John Lennon, Lluís Llach, Zeca Afonso e outros tantos.

O grande diferencial é que a música engajada e, por extensão, a arte engajada, sempre houve e sempre haverá enquanto formos humanos. Censurar isso é que vai contra a correnteza da História. Viva Chico César!

* Estética da Canção Política – alguns problemas. Livros Horizonte, 1977.

**Rap, do inglês Rhythm and Poetry, ritmo e poesia. Música, além destes dois elementos, incorpora a melodia como elemento essencial. É interessante como astros do rap brasileiro, como Criolo ou Emicida, buscam aproximações e mesclas com a música popular, especialmente o samba, expandindo as limitações do gênero.

(publicado originalmente em www.aterraeredonda.com.br)

Criolo e o samba paulista

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Nas décadas de 80 e 90 o samba ainda dominava a trilha sonora nas quebradas da periferia de São Paulo. A onda sertaneja já se fazia sentir, mas a música de feitura coletiva, cantada nas rodas e botecos, ainda era marcada pelo cavaquinho, pandeiro e violão. Nos grandes bailes, Benjor e Tim Maia imperavam, mas era comum se mesclarem com Fundo de Quintal e Benito de Paula.

No extremo sul da cidade, em bairros como Campo Limpo, Grajaú e Jardim Ângela, a rapaziada que cresceu ouvindo samba (e Michael Jackson, claro) manifestava seu inconformismo contra o “sistema” através do rap. Mais incisivo, não requerendo instrumentos e nem sequer saber cantar, o discurso rimado e ritmado mobilizou uma legião de seguidores, e não tardou em formar ídolos locais (depois nacionais) como os Racionais MC’s, surgidos em 1988.

O garoto Kleber, nascido em 1975, logo identificou nas rinhas de rap o seu clã. Seus amigos e colegas ali se reuniam e improvisavam versos. Nesse meio, já conhecido como Criolo, destacou-se pelas letras e por iniciativas como a Rinha dos MC’s, circuito hip hop de grande prestígio até hoje.
Mas Criolo admite que ouvia muito samba em casa. Martinho da Vila, Paulinho da Viola e Moreira da Silva eram constantes na vitrola de seu pai, ao lado de Nelson Gonçalves, Adoniran e Luiz Gonzaga. A contaminação era inevitável, e vinha misturada com uma relação familiar afetuosa. Como poderia o garoto pobre do Grajaú se revoltar contra a música que seus pais curtiam?

Aos poucos, Criolo foi colocando pitadas de samba em seus trabalhos. Confessa hoje abertamente que compõe sambas faz tempo, sem deixar de lado o rap. Desde o álbum Nó na Orelha (2011) incorporava outros gêneros à sua obra. Esta mescla se aprofundou em Convoque Seu Buda (2014), e ao mesmo tempo em que participava de homenagens a sambistas famosos, como Adoniran Barbosa, fazia duetos em discos de MPB e participações especiais em shows e programas de TV.

Em 2017, estabelecido como cantor e compositor, finalmente lança um CD só de sambas (Espiral de Ilusão). Dez sambas autorais, sendo oito assinados por ele, um em parceria com Ricardo Rabelo e Jefferson Santiago, e apenas Hora da Decisão feitos por outros (Rabelo e Dito Silva).
A identificação explícita com o samba se dá desde a primeira faixa, Lá Vem Você, aberta por um cavaquinho. O sotaque paulista de Criolo, carregado nos erres, desfila por letras originais, algumas das quais, sem música, poderiam até soar como rap. As variantes rítmicas (samba de roda com direito a coro feminino, toques de jongo, samba de breque, embolada, pagode e samba rural paulista) comprovam a desenvoltura do intérprete e a ginga do compositor. Pra completar, a capa de Elifas Andrato estabelece mais um vínculo com a tradição discográfica brasileira.

Enfim, Criolo cresce e aparece para a turma do samba e da MPB. Mais que isso, demonstra que pode existir mais afinidade que rivalidade entre samba e rap, gêneros nascidos nas periferias, favelas e morros desse tão maltratado país.

(Publicado na Revista Musica Brasileira em junho de 2017)


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