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O dilema de Torto Arado

Este breve comentário sobre um dos mais bem sucedidos romances brasileiros contemporâneos é mais uma especulação sobre alternativas ficcionais do que uma crítica ao minucioso trabalho do autor, Itamar Vieira Junior. Alguns leitores hão de achar que faço revelações sobre o final, o que não é exatamente verdade. Espero que meus devaneios sirvam para aguçar a curiosidade, jamais para desanimar a leitura. Assim como também anseio que todo o mistério e encanto da palavra revelação nunca possa ser substituída pelo vulgar e exótico spoiler.

As qualidades do romance Torto Arado (Todavia, 2018) já foram suficientemente enaltecidas nos meios literários. Premiado no Brasil e em Portugal, recoloca em discussão o Brasil rural, a população negra espoliada de seus direitos básicos, a exploração do trabalho no campo, a omissão da Justiça e a ausência de políticas públicas em meados do século XX. Sem colocar datas, o autor soube, de forma muito hábil, retratar uma situação que ainda perdura, garantindo sua atualidade. Geógrafo de profissão, e funcionário do Incra, conviveu por muitos anos com a questão agrária, e conhece de perto o mundo que retrata. Ou recria.

O ponto de partida é promissor. Duas irmãs, descendentes de escravos, nascidas na roça, passam por uma experiência (um acidente?), ainda meninas, que vai marcar suas vidas. Bibiana é a narradora da primeira parte, e desenha o cenário, coloca dados históricos e apresenta os principais personagens. O início é magnífico, como realização literária. Uma escrita plena de cores, sabores e sentidos, que evoca e revitaliza autores ligados ao regionalismo, como Graciliano e Rachel de Queiroz.

O livro é dividido em três partes. A narradora da segunda parte é a outra irmã, Belonísia, e aqui há uma dolorida ironia, uma vez que ela não tem voz fisiológica. Os contornos dos personagens ganham nitidez e também nuances. Ambas são filhas de Zeca Chapéu Grande, um líder comunitário e espiritual que incorpora entidades nos jarês, rituais de origem africana com influências indígenas e espíritas.

Podemos dizer que com estes recursos o autor se afasta do realismo cru do regionalismo e se aproxima de autores como Jorge Amado e João Ubaldo Ribeiro, mestres baianos na mestiçagem entre gêneros. E também do chamado realismo mágico latino americano, que marcou de forma profunda a formação de muitos escritores contemporâneos.

Este forte confronto, nunca resolvido, entre o misticismo e a realidade, o subjetivo e o objetivo, a fé e a materialidade nas lutas sociais, é o grande nó da terceira parte. A voz narrativa é entregue a uma entidade, Santa Rita Pescadeira. E o momento culminante, em termos dramáticos, onde se misturam sentimentos de justiça e vingança, é determinado por um fator sobrenatural.

Há criação nisso tudo, há certa poesia. Fazendo uma analogia, um dos momentos mais memoráveis do romance Pastores da Noite, de Jorge Amado, se dá quando uma entidade do candomblé baixa num padre, dentro de uma igreja em Salvador. Alguns podem fazer leituras psicanalíticas destes momentos de transe, em que um personagem toma decisões cruciais inspirado, conscientemente ou não, por seus fantasmas, suas lembranças ou suas crenças. Para ficar no cânone ocidental, Shakespeare utilizou bem esse estratagema em Hamlet e outras obras.

O problema que a terceira parte de Torto Arado nos coloca é até onde dependemos de soluções externas, místicas ou religiosas para resolvermos o problema material da questão agrária, da luta no campo, do reconhecimento de direitos do povo negro, dos indígenas, dos imigrantes. Um personagem bem terreno, Severo, surge desde o início. Ganha corpo na segunda parte, e torna-se fundamental no desenlace do enredo. Vai estudar na cidade, torna-se sindicalista, casa-se com Bibiana, e volta para a terra natal organizando os campesinos. Mas não será por suas mãos que a justiça será feita. Ele fará parte do que Frantz Fanon denominou de condenados da terra.

Está colocado aí um dos grandes dilemas do romance. Entre a fantasia e o enfrentamento da realidade, há uma larga correnteza de possibilidades artísticas. Se Itamar Vieira Junior mantivesse o desenlace dramático nos trilhos do realismo, receberia aplausos de alguns e críticas de outros. Os tradicionais defensores de classe, de gênero e de raça, torceriam o nariz.

E vice versa. A opção por um final motivado pela força imemorial e inconsciente das tradições pode cativar alguns e atrair antipatias de outros. Num país dilacerado por um governo genocida, racista e destruidor do meio ambiente, é ingênuo crer que os deuses irão salvar os indígenas, os quilombolas, os desempregados, os sem teto e sem comida.  Ou mesmo que um deus semita tornado branco irá salvar a classe média, se ela continuar cordata e conivente.

Longa e próspera vida ao Torto Arado (nome extraído de um verso do arcadista Tomás Antonio Gonzaga, in Marília de Dirceu), por seus evidentes méritos estilísticos e sociológicos, apesar das ressalvas. Aguardemos com atenção as próximas obras do autor, que promete aprofundar e ampliar o tema. E que a epígrafe de Raduan Nassar citada no livro inspire a sua pena.

A terra, o trigo, o pão, a mesa, a família (a terra); existe neste ciclo, dizia o pai nos seus sermões, amor, trabalho, tempo.

(Publicado originalmente em A Terra É Redonda)

A luz e as trevas

O relacionamento historicamente conflituoso entre o conhecimento científico e a vida cotidiana das pessoas vem de longa data. Antes mesmo de Galileu Galilei ser condenado à prisão por heresia, pensadores e cientistas da Antiguidade já enfrentavam a desconfiança de seus compatriotas.

A construção de centros de excelência da pesquisa e conhecimento foi penosa, e passou por igrejas e reinados que os moldavam de acordo com suas conveniências. Na Europa medieval esta necessidade de congregar conhecimento ganhou a forma de universidade, sendo a de Bolonha, criada em 1088, considerada a pioneira. Salamanca e Oxford surgiram logo depois, comprovando que o projeto pedagógico de um conhecimento científico podia ser falado em várias línguas. Mas as primeiras “universidades” surgiram na Ásia e África, como Nalanda, na Índia, Taxila (Paquistão), Alazar (Egito), e al Quaraouiyine, no Marrocos, fundada em 859, que é considerada pela Unesco a mais antiga em atividade.

Através dos tempos, com a preciosa ajuda do Iluminismo e do Racionalismo, a ciência foi ganhando espaço e reconhecimento, até chegar ao século XX com a ilusão de ter sido plenamente reconhecida pela sociedade. O crescimento das metrópoles, a expansão midiática, a bomba atômica, a televisão, os foguetes espaciais, a erradicação de doenças, os computadores, a indústria automobilística, a música portátil em vinil (depois em CD, depois em streaming), a cerveja em lata, o raio laser, o forno de micro ondas, o telefone celular, tudo nos fazia crer que a ciência, para o bem e para o mal, estava inexoravelmente mesclada com a humanidade.

Não é bem assim. Primeiro, que boa parte dos seres humanos não usufrui de todas a maravilhas tecnológicas, ou não sentem no dia a dia os efeitos dos avanços científicos. É só acompanhar um dia na vida de um trabalhador rural no interior do Brasil (ou da Guatemala, do Gabão ou da Indonésia) para notarmos que estão muito mais próximos do estilo de vida da Idade Média.

Segundo, a sofisticação atingida em setores de ponta da ciência fez com que se descolassem do senso comum, seja através de um vocabulário impenetrável, seja porque as elaborações teóricas muitas vezes não tem aplicação prática imediata no mundo real. Em paralelo, ocorre um crescimento também exponencial das seitas obscurantistas, dos charlatães midiáticos que lucram com a desinformação, dos negacionistas e dos pseudocientistas.

Uma das tentativas mais bem sucedidas de superar essa cisão tornou-se um gênero literário e multimidiático: a divulgação científica. Cria do século XX, celebrizou alguns nomes, e tem ajudado a universidade a repensar seu relacionamento com a sociedade.

Um belo exemplo desta postura pode ser encontrada no livro A Ilusão da Lua (Editora Contexto, 2021) uma coletânea de artigos escritos pelo físico e ex-reitor da Unicamp, Marcelo Knobel. Cientista respeitado por seus pares e com artigos publicados nas principais revistas científicas do planeta, Knobel dedica boa parte de sua produção intelectual a construir pontes entre o saber acadêmico e a realidade que nos cerca.

O volume traz saborosas explicações sobre fenômenos que nós, leigos, não compreendemos bem (ondas eletromagnéticas, matéria e energia, bioacústica, calor específico, laser), decodificados em exemplos bem humorados (como cozinhar um peru, observar ondas no mar ou ouvir o canto de um canário). Também aborda temas urgentes e “humanísticos” (vacina contra o Covid-19, refugiados, ética científica), e joga alguma luz sobre as trevas ameaçadoras que ressurgem neste século XXI.

Knobel reafirma a importância do diálogo permanente e democrático com todos os segmentos da sociedade, e não só sobre divulgação científica. “Mais do que nunca, neste momento de obscurantismo, negacionismo e de ataques à ciência e à educação, é fundamental entender o que pensa a sociedade sobre os diversos temas que estão permeando o debate público e que afetam direta ou indiretamente a nossa vida.”

Ao dividir em três partes os capítulos-artigos do livro, Knobel chamou a terceira de “Pseudociência, Negacionismo e suas Consequências”. São cinco artigos que exemplificam de forma perturbadora como as mistificações campeiam em nossa mídia, corroborada por políticos inconsequentes. O exemplo mais risível é a proibição de uso de telefone celular nos postos de combustível no município de São Paulo. Sem nenhum fundamento científico, a proibição torna-se ridícula com a evidente contradição de que a máquina onde você paga com o cartão, ao lado da bomba de gasolina, funciona da mesma maneira que um celular!

Estes e outros exemplos da ignorância científica em que estamos imersos reiteram a necessidade da leitura de cientistas como Marcelo Knobel, que não teme apontar os erros da própria Academia em sua relação com o mundo em que vivemos.

(publicado originalmente em A Terra É Redonda)


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