Arquivo para julho \24\-02:00 2023

João Satie e Erick Donato

O título desse artigo poderia ser “Os poetas da síntese musical”. A proposta é – e qualquer artigo é apenas uma proposta jogada no tabuleiro das ideias, não uma sentença – traçar um paralelo entre duas figuras seminais da música do século XX, cada qual no seu contexto.

Satie é considerado um dos precursores do minimalismo musical. Nascido na Normandia em 1866, mudou-se para Paris em 1878, e entrou no Conservatório de Paris, onde foi considerado medíocre. Pra sobreviver, virou pianista de um cabaré, o  famoso Chat Noir. Flertou com o ragtime, precursor do jazz. Conviveu com grandes nomes do cenário artístico, e sua personalidade original cativou pessoas como Picasso, Debussy (que orquestrou peças suas), Ravel e Cocteau.

Donato, nascido no Acre em 1934, nasceu em família musical, e começou tocando acordeon. Foi com a família para o Rio de Janeiro em 1945, e passou a frequentar o restrito circuito musical alternativo da época, então dominada pelo samba-canção. Flertou com o jazz, sucessor do ragtime, aproximou-se dos músicos e compositores da Bossa Nova, sem nunca aderir totalmente ao estilo. Seu coração amazônico estava mais próximo do Caribe que dos apartamentos de Ipanema, e isso se refletiu em sua produção musical.

Satie teve um grande amor na vida, Suzanne Valadon, uma artista plástica que ficou mais conhecida por ter sido modelo de Degas e Renoir, mestres do impressionismo. Donato teve vários amores, mas nenhum como Leila, a quem dedicou várias composições, chamadas Leilíadas. Nos anos 90, Donato ficou quase 20 anos sem gravar. Satie, voltou a estudar música com quase quarenta anos, depois de ficar 15 anos sem compor. É o que diz a lenda…

O que há em comum nas criações desses homens extraordinários? A extraordinária capacidade de síntese, de decantação de ideias musicais. Com poucas notas e harmonias aparentemente simples, conseguem criar atmosferas absolutamente originais. Um mais melancólico, lunar, outro totalmente solar, porém atentos ao mundo musical cambiante em que viveram. Sem seguir correntes, avessos aos modismos, criaram caminhos onde absorveram e moldaram de forma pessoal as formas musicais que conduziam ao caminho da cristalização de uma ideia: haikais musicais, células melódicas e rítmicas que se tornaram paradigmáticas, e que em poucos compassos explicitam um clima.

Ambos foram considerados malucos.  Conta-se que Satie um dia chamou o amigo Debussy para ouvir um novo acorde que havia descoberto, e Claude tinha de ajuda-lo (ou dissuadi-lo) a empurrar o piano pela janela do segundo andar. O último disco de Donato tem na capa a fotografia dele com o amigo Macalé, pelados.

Ambos deixaram obras inesquecíveis, que reconhecemos ao ouvir as primeiras notas. Enquanto o francês refletiu um clima de melancolia e solidão em suas pequenas esculturas musicais, o brasileiro nasceu para bailar. Tocou com músicos de várias gerações, morou nos EUA, acompanhou cantoras notáveis, escreveu inúmeros móbiles musicais cujo encanto se renova a cada audição.

Que sorte podermos fruir a arte desses malucos adoráveis!

(Publicado originalmente em A Terra É Redonda).

Ah, as influências…

Mais uma vez leio um jovem aspirante a escritor responder à velha e gasta pergunta sobre influências literárias. E ele desfia, orgulhoso, uma relação de notáveis.  A cena é conhecida e os nomes podem variar, mas como tem gente que se gaba de ter influência de Faulkner, Kafka, Machado, Proust, Flaubert, Dostoievski! Os mais modernos citam Kundera, Bukowski, Bolaño, Raduan, Borges, Rubens Fonseca, etc.

Escritoras são mais democráticas, citam homens e mulheres. Homens dificilmente citam uma mulher, repararam? Mesmo com toda a fantástica literatura produzida por mulheres no século XX, parece que ainda não alcançaram o status de “influenciadoras literárias”. Mais uma distorção cultural que tende a desaparecer, uma vez que temos hoje mais mulheres que homens escrevendo, e que no próximo século – eu sou vidente! – serão mais citadas do que os homens. 

A questão da influência, portanto, é contaminada por preconceito e exclusão. E aqui me refiro apenas à prosa, não à poesia, seara onde Harold Bloom* pontificou, e que não ouso palmilhar. Mas como se pode eliminar do rol de influentes todos os clássicos de literatura infanto-juvenil que percorremos desde a tenra vida de leitor? Será que Esopo, La Fontaine, Andersen, Perrault, Defoe, Stevenson, Verne, Lobato, Ségur, Dumas, Mark Twain, Lagerlöf, Ruth Rocha, João Carlos Marinho e tantos outros, nunca influenciaram ninguém? Tem certeza?

E a chamada baixa literatura? Passamos a infância e adolescência, alguns até hoje, lendo Turma da Mônica, Pato Donald, Tarzan, Homem-Aranha, Batman, folhetins, as Sabrinas da banca de revistas, e assistindo novelas da TV e filmes da sessão da tarde. Os mais intelectualizados curtiram Charlie Brown, Calvin ou Mafalda. Jura que isso nunca influenciou a tua escrita?

Nem vou falar daquela professora que corrigiu tua redação, elogiou e fez críticas, sugeriu leituras. Ela não é escritora, o que fez foi aplicar uma lição que pode (ou não) ter influenciado tua formação. Tendemos a considerar “influência” apenas aqueles autores que nos impactaram e nos fizeram desejar, um dia, escrever do mesmo jeito. Ou até melhor, se a ambição for o motor da literatura.

Imagino uma cena em que um(a) jovem escritor(a) senta na minha frente, na mesa de um bar, e diz que está escrevendo uma ficção delirante, onde numa cidade imaginária ninguém sabe como as crianças são geradas, e não existem pai e mãe, os tutores aparentemente são tios ou tias. As relações de parentesco são estranhas, inexplicáveis. Os personagens até namoram, mas nunca se casam ou têm filhos. Enquanto fala os olhos brilham, com a certeza de estar criando uma distopia revolucionária.

E eu, com a mente cheia de influências que vão de Umberto Eco até o Profeta Gentileza, depois de um gole de cerveja e um olhar entre cínico e piedoso, responderei que esse lugar se chama Patópolis.

*A Angústia da influência: uma teoria da poesia (Imago, 1991). 

Selva no sertão

Um dos encantos mais desafiadores – ou um dos desafios mais encantadores? – da literatura contemporânea é o convívio, nem sempre pacífico, de diversas formas e estilos. Estão definitivamente enterrados no século XX os últimos movimentos literários hegemônicos que caracterizavam uma época. Romantismo, Realismo, Modernismo e outros ismos continuam aflorando aqui e ali, porém misturados com novas formas de contar uma história.

É possível se aventurar nos limites da língua, implodir regras gramaticais, flertar com grafismos, buscar sonoridades inusitadas, cruzar as fronteiras entre prosa e poesia, assim como é possível explorar os caminhos da oralidade, da linguagem popular, da recuperação de mitos e tradições ancestrais, jogando novas luzes sobre veios ainda não esgotados.

O romance Selva (Editora Bambual, 2021), de Paulo Freire, se encaixa nessa última categoria. E é impossível não falar da biografia do autor, para uma avaliação mais precisa da obra. Paulinho Freire, como é conhecido, nasceu em São Paulo, em berço letrado. Estudou jornalismo, e motivado pela leitura de Grande Sertão: Veredas, viajou para o norte de Minas Gerais onde se dedicou ao estudo da viola caipira. Teve um mestre local, Seu Manelim, com quem aprendeu segredos do instrumento, além de roçar, plantar arroz na vazante e torar lenha.

De volta a São Paulo, estudou violão clássico, tocou com muita gente, animou bailes.  Excursionou pela Europa e estudou na França, mas a viola e o sertão se impuseram na sua vida.  Compôs trilhas sonoras, gravou vários discos, e foi desenvolvendo no palco a arte de contar histórias. Ou causos. Seus shows são um misto de narrativas e composições, onde filtra as várias influências, do erudito ao sertanejo.

O romance entrelaça duas trajetórias distintas. Uma família que abandona o sertão e vai para o Sul por sobrevivência, e que se pulveriza com a morte do pai. Uns morrem, outros se perdem, alguns retornam depois de algum tempo, carregando traumas que não se apagam.

A protagonista do romance é Maria do Céu, Céu, apelidada Selva. Uma jovem que sai de São Paulo, abandonando a família de forma abrupta, e “vira hippie”, nas palavras de uma tia. Experimenta drogas, relacionamentos fugazes, falta de grana e outros contratempos. Interessada em plantas e ervas medicinais, acaba indo parar no sertão do norte de Minas, onde vai estabelecer intensa relação com Teófilo, um dos sobreviventes da primeira saga.

Freire foge da obviedade de um enlace amoroso entre os personagens com um artifício engenhoso. Quando eles se encontram, ele é um sexagenário, e só então percebemos que as narrativas iniciais se dão em épocas diferentes. A relação que se estabelece, portanto, é a de um mestre conhecedor das ervas, cascas e raízes do sertão com uma aprendiz que procura fazer disso algo que dê sentido à sua vida.

Há outros personagens relevantes, como a velha Luduvina, mãe de criação de Teófilo, mestra suprema dos chás, unguentos e poções. Irmãos e irmãs vão ganhando perfil definido, e a sutil chegada de um camelô, uma veterinária e de estudantes de biologia vão alterar o frágil equilíbrio social da pequena comunidade. E os carvoeiros ameaçam no horizonte com a fumaça da destruição.

É claro que Paulo Freire colocou em sua personagem Selva muito de sua vivência, como qualquer bom ficcionista. A linguagem direta, sem floreios, busca a oralidade de seus causos, mas sem perder de vista a dimensão ficcional. Não é um neófito. Já escreveu outros romances, ensaios e relatos de viagem. Escritores que não tocam nenhum instrumento costumam torcer o nariz para músicos que escrevem. É um sentimento mesquinho, frustrado. Contemporâneos do escritor, dramaturgo e compositor Chico Buarque, prêmio Camões, deviam ser menos corporativos (ou invejosos?).

Selva não é um romance perfeito. Há aqui e ali alguma inconsistência, alguns episódios pedem mais detalhes, alguns personagens poderiam ser mais aprofundados. Mas não é assim com os saborosos causos que Paulo Freire está acostumado a contar nos palcos? Quando lemos um cordel, passa pela nossa cabeça que tal personagem deveria ser mais desenvolvido, ou que aquele nó dramático poderia ser mais explorado? Claro que não, embarcamos na fruição da história e só esperamos que seja bem contada. Essa reconquista da oralidade dá outro sabor à complexa elaboração do arco dramático de um romance de 360 páginas, e que emociona em alguns momentos. Como dizem os italianos, “se non è vero, è bene trovato!”

Paulo Freire acrescenta uma cereja ao bolo: em cada capítulo há um QR Code onde você pode ouvir uma trilha sonora, composta pelo autor, para incrementar o clima da leitura. Nem Chico Buarque pensou nisso…

A tragédia do mercúrio na Amazônia

Os preocupantes níveis de mercúrio encontrados em amostras de peixes amazônicos, confirmados em pesquisa da Fiocruz/UFOPA, trazem à memória os terríveis relatos de Minamata, da década de 1950.

Nessa pequena cidade da costa japonesa foram pela primeira vez identificadas as enfermidades neurológicas causadas pelo mercúrio no organismo humano. Muitas pessoas apresentavam distúrbios que afetavam a visão, o tato e a audição, chegando a causar paralisia e morte. Diversos fetos estavam contaminados, e nasceram com problemas irreversíveis, físicos e neurológicos. Batizado de “Mal de Minamata”, foi um alerta para todo o planeta do alto risco embutido na poluição das águas.

O cientista Akagi Hirokatsu (1942/2020), que trabalhou no Instituto Nacional do Mal de Minamata, descobriu na década de 80 um método de medição do organomercúrio que é utilizado hoje em todo o mundo, inclusive nesse estudo da Fiocruz.

Com vários estados amazônicos apresentando índices de contaminação muito acima do permitido, o desastre é iminente. Utilizado principalmente na mineração, legal ou ilegal, as quantidades mortíferas de mercúrio despejadas nas águas da Bacia Amazônica são uma tétrica confirmação de que a humanidade não aprende com os próprios erros, e muita dor e sofrimento ainda advirão desse crime ambiental.

Roraima, estado campeão de devastação e mineração ilegal, é também o recordista de amostras contaminadas: 40% das coletadas em mercados e feiras livres estavam acima do limite aceitável. Por um fenômeno cumulativo, o mercúrio aumenta de acordo com a cadeia alimentar, ou seja, os carnívoros do topo, que se alimentam de peixes menores, acumulam índices maiores do elemento mortal. Traduzindo: pirarucu, tucunaré, pintado, filhote, ou seja, alguns dos mais nobres peixes amazônicos.

É óbvio que não são apenas populações ribeirinhas “invisíveis” que comem peixes com mercúrio. Eles estão também no cardápio dos principais restaurantes e hotéis da Amazônia dos “ricos”, em Manaus, Belém, Santarém e outras cidades da região. Muitos já são encontrados em supermercados chiques do Sul do país. 

O premiado cineasta Jorge Bodanski realizou o filme “Amazônia, a nova Minamata?” (2022), enfocando o povo Munduruku. Descreve a luta da líder Alessandra Korap, que levou médicos e pesquisadores à região para pesquisar o mal que ameaça sua gente. Também dá voz ao neurologista Erick Jennings, cientista que investiga porque muitas crianças amazônicas têm problemas neurológicos. 

Nas palavras de Bodanski, “este é um dos filmes mais importantes e difíceis da minha vida. Não podemos deixar que a Amazônia se transforme numa nova Minamata”. O filme dialoga com o documentário “Minamata: the Victims and heir World” (1971), de Noriaki Tsuchimoto, que pode ser visto no Youtube em versão com legendas em inglês (*).  O autor japonês produziu uma série de documentários sobre o desastre, e inspirou até produções americanas, como Minamata (2020), com Johnny Depp, de valor discutível. Para saber mais e melhor, fique com o original.

(*) https://www.youtube.com/watch?v=Sf6FHMR7LVQ&ab_channel=zakkafilms

Trailer do filme de Jorge Bodanski: https://www.youtube.com/watch?v=SQB0QfIDsyg&ab_channel=AmazoniaLatitude


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