Desde adolescente me interesso pelo processo de criação artística. Claro que no início meu foco eram os músicos que admirava, os compositores de rock e MPB. Lembro de Chico Buarque, numa entrevista histórica, dizer que se identificava mais com Geraldo Pereira que com Noel Rosa. Paulinho da Viola venerando Wilson Batista. E John Lennon confessando a admiração pelos velhos mestres do blues.
Na faculdade, ampliei meu interesse pelas artes plásticas. Pintores que copiavam mestres até a exaustão, procurando absorver os segredos escondidos sob a tinta. Escultores e gravadores que buscavam segredos nos sketchbooks dos inspiradores. No cinema, então, é notória a adoração de alguns diretores pelos seus ídolos. Brian de Palma copiando Hitchcock, Tarantino citando os japoneses ou os western spaguetti, Herzog recriando Murnau. Isso pra não falar das centenas de copiadores e plagiadores de baixa extração, claro.
Mas em literatura ocorre um fenômeno curioso. Leio e ouço entrevistas de escritores, jovens ou veteranos, onde afirmam que sua maior influência foi X (coloque aí um figurão da literatura mundial). Flaubert, Proust, Borges, Cortazar, Kafka, e por aí vai. Parece que surge aí uma vontade de ser maior, de dizer “veja como sou bom”, às vezes até de forma inconsciente.
Considerando que o verbo é o primeiro meio de expressão de qualquer ser humano – vamos considerar que o choro não é propriamente uma linguagem codificada – as primeiras leituras deveriam marcar para sempre o indivíduo, certo? O fascínio das primeiras histórias, dos primeiros gibis, das primeiras aventuras de capa-e-espada. Mas quem admite que foi influenciado por Walt Disney, La Fontaine ou os irmãos Grimm?
Será que só eu admiro até hoje a criatividade prodigiosa de Julio Verne? Ou a utopia africana de Edgar Rice Burroughs, o criador de Tarzan, que devorei na adolescência? Como não ser influenciado por Monteiro Lobato, leitura que me marcou para sempre? E que dizer então de Daniel Defoe, cujo Robinson Crusoé inspirou a vontade de partir para uma ilha deserta? E Alexandre Dumas pai, Jack London, a incrível Condessa de Ségur, o genial Rudyard Kipling, o assustador Melville, o lendário Robert Louis Stevenson, o fantástico Jonathan Swift? Isso pra não falar de Homero, que alguns acusam de não ter existido.
Boa parte do que li nessa fase era comprado em banca de jornal. Gibis, principalmente do Homem Aranha e do Batman. Asterix, claro, li quase todos. Depois passei pela fase dos policiais (Poe, Agatha Christie, Chesterton e Simenon, principalmente), me interessei por ficção científica (Asimov, Clark e, claro, Bradbury, que adoro até hoje). Isso pra não falar da centena de autores hoje esquecidos, mas que contribuíam para coletâneas de contos destes e de outros gêneros.
Muito do que conheci do Brasil também foi através da literatura. Jorge Amado, Rachel de Queiroz, José de Alencar, e, confesso, José Mauro de Vasconcelos. Era o que havia na prateleira, e eu pegava sem preconceitos. E contos, muitos contistas. Estou falando dos anos 70, e apesar da ditadura militar, havia revistas e jornais literários ao alcance. Era uma cultura de resistência, que enfrentou a censura da época com destemor, mas acabou perdendo para o rolo compressor da cultura de massa, com sua vulgaridade colorida.
A mente era uma esponja, absorvendo tudo. Ao chegar na fase, digamos, adulta, toda essa informação literária estava sedimentada. Arquétipos narrativos, percursos estéticos, opções morais, convicções políticas, nada disso foi profundamente alterado pelo que veio a seguir. Acompanhei com atenção o realismo fantástico latino-americano, matei a curiosidade sobre a literatura beat, li diversos clássicos, encarei o Proust, o Joyce, o Guimarães Rosa e outros mitos. Confesso que, destes últimos, o brasileiro foi o que mais me tocou.
Durante metade de minha vida estabeleci a meta de ler pelo menos um clássico por ano. Balzac, Dickens (pelo qual passei batido na adolescência), Kafka, Goethe, Vitor Hugo, Faulkner, Cervantes, Machado, Graciliano e vários luminares contemplados com o Nobel (havia uma coleção de premiados, em casa). Poderia desfiar mais uma penca de nomes aqui, mas não é isso o que interessa. Mesmo porque vários figurões de outrora hoje estão desfocados na memória, e alguns caminham mesmo para o esquecimento.
Voltando ao tema “influências”, acho assombroso que um escritor declare em entrevista que sua maior influência seja o reverenciado autor X. O cara é tão limpinho que não admite a influência de todas as porcarias que leu na vida? Ou despreza a literatura dos anos de formação? Será que acredita, sinceramente, que todos os gibis, filmes, seriados de TV e catecismos (no bom e no mau sentido) não o influenciaram? Não deixaram nenhuma marca em sua maneira de pensar, na sua forma de escrever?
Gostaria muito de afirmar um dia, todo pimpão, que Machado de Assis me influencia mais que o Pato Donald. Infelizmente, por mais que soe desairoso, desconfio de que isso não condiga com a realidade…