Voltou a chover em São Paulo. Minha conta d’água vai diminuir, pois não parei de regar o jardim. E hoje, por conta de uma tarde chuvosa, no trânsito, me encantei com as pessoas andando nas calçadas com guarda-chuvas coloridos.
Pode um homem curtido pelos anos se encantar com algo tão banal? Até pode, no caso dos poetas. No caso deste prosaico ser que aqui escreve, afloraram à memória cenas do adorável filme Les Parapluies de Cherbourg (Jacques Demy, 1964). Ali nascia o mito Catherine Deneuve, cantando (um tanto desajeitada) na chuva.
Assisti o filme muito depois, claro, quando já havia se tornado lenda. É curioso como os franceses, que inventaram o cinema (boa discussão, aliás), de vez em quando tentam reinventar as fórmulas holliwoodianas, fazendo coisas surpreendentes como o premiado O Artista (Michel Hazanivicous, 2012), ganhador de vários Oscars. Em Os Guarda-chuvas do Amor (nome brasileiro do filme) emularam o formato do musical americano, radicalizando a proposta. Não há uma fala coloquial no filme, tudo é cantado. Uma pequena ópera moderna, urbana e desencantada, que acompanha o romance e o drama de uma jovem cujo noivo vai para Argélia, deixando-a grávida.
O responsável pela partitura é o famoso Michel Legrand (1932), autor de inúmeras trilhas sonoras do cinema mundial. O cara tem um talento especial para criar melodias simples e grudentas, facilmente memorizáveis. Mas também é um músico completo, que escreve, arranja, toca e dá palpites, como no caso deste filme.
Ao chegar em casa, depois da chuva, assobiando a popular trilha (aliás, se tornou mais popular que o filme!), encontrei um vídeo precioso. Legrand, num programa da TV americana apresentado por Shirley Bassey, improvisa ao piano sobre o tema Je ne pourrai jamais vivre sans toi. Mostra que domina o métier, mudando de estilo várias vezes: hard bop, cool jazz, bossa nova, clássico romântico, o escambau. É um exemplo de como uma pequena frase musical pode ser lida de diversas maneiras, tornando a audição muito mais interessante.
Confesso que acho o tema meloso. Está inexoravelmente ligado, na minha memória, a momentos bregas. Sinto até o cheiro de mofo do cinema de bairro, antes da cortina se abrir. Mas, pensando bem, esta é uma situação da qual ainda tenho saudades…
Pra quem nunca imaginou a jovem Deneuve cantando, aqui vai uma amostra:
O que uma simples chuva não traz de lembrança… Quem quiser ver o filme inteiro (em francês, legendas em inglês) clique aqui. Chove, chuva. chove sem parar…