Arquivo para fevereiro \25\-02:00 2014

Guarda-chuvas do amor

Voltou a chover em São Paulo. Minha conta d’água vai diminuir, pois não parei de regar o jardim. E hoje, por conta de uma tarde chuvosa, no trânsito, me encantei com as pessoas andando nas calçadas com guarda-chuvas coloridos.

Pode um homem curtido pelos anos se encantar com algo tão banal? Até pode, no caso dos poetas. No caso deste prosaico ser que aqui escreve, afloraram à memória cenas do adorável filme  Les Parapluies de Cherbourg (Jacques Demy, 1964). Ali nascia o mito Catherine Deneuve, cantando (um tanto desajeitada) na chuva.

Assisti o filme muito depois, claro, quando já havia se tornado lenda. É curioso como os franceses, que inventaram o cinema (boa discussão, aliás), de vez em quando tentam reinventar as fórmulas holliwoodianas, fazendo coisas surpreendentes como o premiado O Artista  (Michel Hazanivicous, 2012), ganhador de vários Oscars. Em Os Guarda-chuvas do Amor (nome brasileiro do filme) emularam o formato do musical americano, radicalizando a proposta. Não há uma fala coloquial no filme, tudo é cantado. Uma pequena ópera moderna, urbana e desencantada, que acompanha o romance e o drama de uma jovem cujo noivo vai para  Argélia, deixando-a grávida.

 O responsável pela partitura é o famoso Michel Legrand (1932), autor de inúmeras trilhas sonoras do cinema mundial. O cara tem um talento especial para criar melodias simples e grudentas, facilmente memorizáveis. Mas também é um músico completo, que escreve, arranja, toca e dá palpites, como no caso deste filme.

Ao chegar em casa, depois da chuva, assobiando a popular trilha (aliás, se tornou mais popular que o filme!), encontrei um vídeo precioso. Legrand, num programa da TV americana apresentado por Shirley Bassey, improvisa ao piano sobre o tema Je ne pourrai jamais vivre sans toi. Mostra que domina o métier, mudando de estilo várias vezes: hard bop, cool jazz, bossa nova, clássico romântico, o escambau. É um exemplo de como uma pequena frase musical pode ser lida de diversas maneiras, tornando a audição muito  mais interessante.

Confesso que acho o tema meloso. Está inexoravelmente ligado, na minha memória, a momentos bregas. Sinto até o cheiro de mofo do cinema de bairro, antes da cortina se abrir. Mas, pensando bem, esta é uma situação da qual ainda tenho saudades…

Pra quem nunca imaginou a jovem Deneuve cantando, aqui vai uma amostra:

O que uma simples chuva não traz de lembrança… Quem quiser ver o filme inteiro (em francês, legendas em inglês) clique aqui. Chove, chuva. chove sem parar…

Eduardo Coutinho

 

Eduardo Coutinho

                Documentários sempre fizeram parte de nossa vida cinematográfica, ainda que muitos não se lembrem disso quando falam de cinema. Desde a infância, quando ia assistir desenhos de Walt Disney, os documentários sobre vida animal que antecediam o filme principal eram fascinantes.

                Estudei cinema na universidade, e certamente por causa dos documentários. Comecei a trabalhar com audiovisual entrevistando, reportando, documentando e registrando movimentos sociais, nos anos 80. Foi a década de redemocratização, e havia uma vontade represada de vários segmentos sociais por se comunicar. Falar, mostrar, cobrar, denunciar, e, claro, acabar com a ditadura.

                O primeiro prêmio importante que ganhei foi com um documentário sobre o centenário da Abolição, em 1988. Entre os jurados, Eduardo Coutinho. No dia da apresentação, me puxou de lado e falou o quanto tinha gostado de Além de Trabalhador, Negro. Um doc de 35 minutos feito com o apoio da Ford Foundation.

                Eu fiquei sem palavras. O cara tinha feito o melhor documentário que eu tinha visto na  vida, Cabra Marcado para Morrer (1984). Na década anterior, tinha ajudado o Globo Repórter a ser um dos melhores programas da TV brasileira, muito acima do lixo que é hoje. Coutinho era um mito, um revolucionário da forma, um guerrilheiro do conteúdo. É até hoje o primeiro na minha lista pessoal de melhores documentaristas de todos os tempos.

Cabra marcado

                Nunca cheguei aos tornozelos do mestre. Continuei acompanhando sua obra, que conhecia desde uma frustrada experiência de ficção, o longa O Homem Que Comprou o Mundo, com Paulo José. Frustrado para ele, porque sempre achei bem legal. E vieram os docs Edifício Master, Santo Forte, Santa Marta, O Fio da Memória…

                Quando parecia estabelecido, mestre incontestável de um estilo personalíssimo de entrevistar, abrindo brechas na alma das pessoas, deu outra virada na carreira. Jogo de Cena, de 2007, derruba a cerca entre ficção e realidade, encenação e registro. Atrizes famosas e mulheres anônimas contam suas histórias de vida, mas às vezes os papéis estão trocados, outras vezes não se descobre se é uma encenação ou um fato real da vida das atrizes. Tudo se resume a um palco escuro, um foco de luz sobre uma cadeira e as mulheres falando. E é, novamente, revolucionário.

Jogo de cena

                Coutinho tinha 74 anos quando fez Jogo de Cena. Se reinventar nessa idade não é pouco. Um garoto, diria Manoel de Oliveira. Lembro-me de Jean-Claude Bernadet declarando sua admiração por Cabra Marcado. De tantos outros cineastas de ficção reconhecendo a maestria de Coutinho. E o espanto de todos perante aquela invenção, aquele novo marco cinematográfico fincado em nossa história.

                Coutinho se foi tragicamente, está nas manchetes de hoje. Tudo que posso fazer é homenageá-lo com minhas lembranças, e recomendar a todos: conheçam sua obra, assistam, discutam, divulguem. O Brasil perdeu seu maior cineasta.


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