Arquivo para maio \28\-02:00 2012

Uma árvore de domingo

Fotografei esta árvore em Campos de Jordão, ontem.

A natureza leva muitos anos para criar um jardim suspenso, como esse, num simples galho. Um pequeno ecossistema, que reúne várias espécies vegetais e animais. Uma moto-serra acaba com isso em poucos minutos, claro.

Se alguém não entendeu: VETA, DILMA!

Jornalistas, acima da lei?

Eu gostaria de ouvir um único motivo convincente dos que defendem a não-convocação de jornalistas na CPI do Cachoeira. Ou em qualquer CPI.

Jornalista é inimputável? Nasceu ungido de inocência perpétua? Crimes e delitos não existem dentro das redações, estes conventos da  informação?

A última desculpa que ouvi foi a de que abriria um “perigoso precedente”. Perigoso pra quem? Para a liberdade de imprensa? Claro, sabemos todos que investigar a verdade pode ser perigoso, alguns até perdem a vida nessa busca. Mas não se deve deixar de buscar, nunca! E imprensa livre não é exatamente aquela que se enconde atrás de acordos obscuros.

Além do mais, o jornalista que falou de “perigoso precedente” é um desinformado. Ou seja, um péssimo jornalista. O professor Venício Lima lembra bem, aqui, que já houve convocação de jornalistas em CPIs no Brasil. No resto do mundo civilizado, é até praxe.

A CPI da Última Hora rolou no tempo de Getúlio, e convocou notórios jornalistas como Samuel Wainer e Carlos Lacerda. O mundo não caiu por causa disso. Aliás, ficou mais claro.

Durante a ditadura militar rolou a CPI do acordo Globo X Time-Life, que convocou representantes de ambas as partes. Além de Walter Clark (diretor da Globo) e João Calmon (então presidente da Abert), o próprio Roberto Marinho foi convocado e se submeteu a interrogatório. Portanto, houve precedente, e envolveu gente bem mais categorizada que os suspeitos de hoje.

Enfim, vivemos num país onde parlamentares, religiosos, advogados, juízes, prefeitos, governadores e presidentes podem ser convocados, julgados e condenados (ou inocentados). Por que jornalistas estariam acima da lei?

Os margaridões de Van Gogh

Fim de semana ensolarado, resolvo dar uma volta pelas ruas do Butantã. Num dos últimos terrenos baldios da Vila Gomes parei para apreciar a vingança da natureza contra a especulação imobiliária.

 Margaridões (ou arnicões, segundo meu velho amigo Sylvio Panizza) esparramavam seu amarelo pela paisagem. Quando cheguei bem perto, tentando focar uma abelha com minha compacta, tive um alumbramento. Me senti uma espécie de pintor holandês, e tive até de me certificar se minhas orelhas estavam no lugar.

Van Gogh gostava de girassóis e coisas amarelas em geral. Há uma curiosa teoria de que, enquanto pintava nos campos de trigo, mascava alguns talos que continham um pequeno fungo, de onde (no século seguinte) se sintetizaria o ácido lisérgico, mais conhecido como LSD. Engenhosa tese que é reforçada quando contemplamos os famosos ciprestes bruxuleantes e céus revoltos do torturado artista.

Não sei se há margaridões na França. Por aqui são comuns, e gozam de certa fama medicinal. Mas olhando bem o famoso quadro, suspeito que o que a História da Arte entendeu serem girassóis são, na verdade…. margaridões!

(Eu juro que só tomei uma taça de vinho!)

Noel e o humor na canção

Noel Rosa sempre dá samba. Em qualquer roda que se preze isso não é novidade. Mas Noel, com toda sua grandeza, também dá tese, artigo, ensaio e livro.

   O mais recente, que saiu do forno na semana passada, é o da professora e pesquisadora Mayra Pinto, de São Paulo. Depois de escrever vários livros didáticos e passar por mestrado e doutorado, descobriu no sambista da Vila Isabel um tema original, que vem enriquecer a estante de estudos sobre a música (e a poesia) popular brasileira.

  Para ela, Noel “criou um modelo de excelência poética”. A partir dele, “ficou a experiência de que a canção, em sua imbricação de linguagens – musical e linguística – poderia ser uma produção cultural de primeira grandeza”. Conversei com Mayra,  pedi uma entrevista para a Revista Música Brasileira, fui no lançamento e acabamos amigos!

– Como surgiu a ideia de escrever sobre Noel, com este enfoque?

Por incrível que possa parecer, tive a ideia de analisar a obra do Noel via um teórico russo, o Bakhtin. Para quem trabalha com cultura popular e/ou análise literária com viés enunciativo, há uma obra dele cuja leitura é obrigatória: A cultura popular na idade média e no renascimento. Há toda uma teoria do humor aí, além de um ensaio brilhante sobre a obra de Rabelais, que teria sido, segundo Bakhtin, um lugar erudito (no renascimento) que pôde ser atravessado por diversas imagens próprias da cultura popular (da idade média) europeia. Bem, a partir dessa leitura, fiquei pensando se não teria havido na nossa cultura um fenômeno semelhante, já que aqui há toda uma larga história das confluências entre cultura erudita e popular desde o século XIX sobretudo na música. E Noel, pra mim, cumpriu de certa forma essa função de misturar elementos próprios da cultura popular – além dos temas, claro, toda a linguagem musical que vinha sendo reelaborada pelos sambistas do Estácio – e da cultura erudita – com a sofisticação poética de letras carregadas de ironia e marcadas pelo discurso coloquial que, só a partir da geração dele, entrou de fato como uma marca linguística de primeira grandeza na canção.

– O humor está na origem da poesia (e da música) brasileira, desde Gregório de Matos. Letras satíricas, canções chistosas e lundus maliciosos fazem parte da nossa formação. Noel é uma mudança qualitativa nessa tradição?

Acho que sim, porque com ele entrou um tipo de ironia que não havia antes e com uma segurança poético-musical incrível. Como disse o Luiz Tatit, a obra do Noel dá a impressão de que o samba sempre existiu! Tamanha a “naturalidade”, a familiaridade que a gente sente ao ouvir suas canções. No seu momento mesmo, há toda uma produção humorística nas canções, como você diz, chistosas, maliciosas e/ou satíricas (não nos esqueçamos das deliciosas marchinhas de carnaval e de inúmeros sambas clássicos, inclusive de Noel, com esse tipo de humor). Mas Noel traz a ironia na canção. Por exemplo, leia/ouça “Gago apaixonado” cujo discurso é de um gago que encaixa milimetricamente nas frases musicais; é literalmente um samba cantado por um gago! Só por isso, já seria genial, mas aí temos o toque noelino precioso: a autoironia. Noel funda na canção esse sujeito lírico capaz de tirar sarro de si mesmo. Moderníssimo isso.

– Por que a canção “Com Que Roupa?” é tão emblemática na obra de Noel?

Porque é o primeiro samba dele gravado (junto com “Malandro medroso”) e já nasce um clássico por inúmeras razões, mas, a principal, a meu ver, é que ele entra aí num baita confronto com o que está começando a se estabelecer como um paradigma em várias frentes: desde o arranjo da canção – bem mais simples só com um violão e cavaquinho – passando pela interpretação – ele mesmo grava a canção, com sua voz “pequena” num meio dominado pelo vozeirão-modelo de Francisco Alves (Mário Reis começava aí, e claro que foi uma inspiração e incentivo pro Noel) – até chegar na letra da canção – que confronta o estereótipo do malandro “bem sucedido”, que mal começava a se formar, veja, e era o mote de inúmeros sambas da época (em “Com que roupa?” o malandro não tem dinheiro sequer para vestir uma roupa adequada para ir ao samba devido à crise financeira de 29 que afetou a todos, inclusive o malandro!). Então, essa voz de Noel, que chamo de uma voz de confronto (com os valores dominantes do trabalho, da moral etc.), já se mostra claramente, e de modo seguro, desde seu primeiro samba. Se vc pensar que um artista, geralmente, leva anos para amadurecer seu trabalho, para conquistar a segurança de um estilo, é bastante surpreendente o que aconteceu com o poeta da Vila já aos 19 anos.

– Um traço característico da música brasileira, principalmente do samba, é falar da dor de modo irônico, dando risada. A falta de dinheiro, de trabalho, de amor, a traição e até a morte serviram de tema para inúmeras canções irônicas, alegres, que fazem rir e pensar. Noel foi um dos criadores dessa fórmula?

Creio que sim. Mas Noel contribuiu para essa fórmula no viés mais “amargo”. Sua risada não é “solar”, por exemplo, como a de um Braguinha ou de um Lamartine Babo, contemporâneos e parceiros seus. Várias canções de Noel carregam um riso que é também a expressão de uma dor; a crítica, em sua obra, não é só do deboche, que há também, mas em boa parte de suas canções, a ironia sugere um desprezo pelos valores dominantes com um traço de amargura. Pense em “Filosofia”, por exemplo, em que o sambista se queixa da “incompreensão” do mundo a respeito de sua condição de artista/sambista e, ao mesmo tempo, revela sua “estratégia” para lidar com essa dor: “Mas a filosofia/Hoje me auxilia/A viver indiferente assim./Nesta prontidão sem fim/Vou fingindo que sou rico/Para ninguém zombar de mim”. Sua estratégia é o fingimento de um suposto desprezo, no fim das contas, por esses valores: ele finge não se importar, mas, ele se importa; como qualquer artista, o sambista precisa do reconhecimento de seu trabalho para seguir. Essa é a um marca singular da voz de Noel: a ambiguidade própria da ironia permite um jogo de disfarce em que o sujeito “finge” seu desprezo pelos valores dominantes (com graça, num tom alegre) e ao mesmo tempo denuncia esses valores como opressivos (com amargura, num tom menor). Veja a última estrofe de “Filosofia”: “Quanto a você/ Da aristocracia/Que tem dinheiro/Mas não compra alegria/Há de viver eternamente/Sendo escrava desta gente/Que cultiva hipocrisia”. Fica bem clara aí a atitude crítica, e agressiva até, desse sujeito aparentemente desvalido e frágil, mas ao mesmo tempo capaz de denunciar, com eloquência, as contradições mais cruéis da ordem social.

O livro Noel Rosa – O Humor na Canção (Ateliê Editorial/ Fapesp), de Mayra Pinto, foi lançado em São Paulo no dia 8 de maio, na Livraria da Vila. Vamos torcer para que, em breve, esteja em todas as rodas… digo, livrarias do Brasil!

(foto: Helvio Romero)

Para o seu governo

Esta semana fui ao teatro. Ou melhor, fui ao espetáculo de dança-teatro-poesia do grupo Caleidos, na Galeria Olido, em São Paulo. Depois de ter enfrentado o mico da Virada Cultural, semana passada, com gente demais pra tudo quanto é lado, nada melhor que voltar ao velho Centro e ver que ainda há salvação.

O Caleidos segue uma linha muito interessante de trabalho, misturando prosa, poesia, dança e teatro. A coreógrafa Bel Marques, formada na escola de Laban, propõe uma interação  entre bailarinos e público de uma forma inovadora. Eu, pelo menos, nunca tinha passado por esse tipo de experiência.

Nós (o público) entramos pelos bastidores, e fomos posicionados no palco, não na platéia. Um grande tabuleiro quadriculado, onde cada pessoa ocupou um metro quadrado marcado no chão. Os bailarinos dançaram à nossa volta, movimentando as pessoas como peças de xadrez, de um quadrado para outro, mas de forma delicada, sem constrangimentos. Tudo isso é regido por um texto, lido ao vivo pelo autor Fábio Brazil, que enumera estatísticas monstruosas sobre a nossa, digamos, civilização. “Para o seu governo, este espetáculo começou há 15 minutos. Nesse período, 2.412 mulheres sofreram algum tipo de violência no Brasil”. O “Para seu governo…” vai enumerando dados urbanos, nacionais e mundiais, mesclados a uma trilha sonora intensa e tensa.

Durante uma hora fazemos parte do espetáculo. Às vezes em pé, às vezes sentados, cada um no seu metro quadrado. Ou melhor, no quadrado da vez. Saí de lá pensativo, e louco para comer um autêntico bauru do Ponto Chic. Infelizmente, às 21 horas de uma sexta-feira, estava fechado. Sinal dos tempos, do medo que se instalou no centro de São Paulo. Os mendigos na calçada da avenida São João ocupavam seus quadrados. Ou melhor, o quadrado da vez. Amanhã estarão em outro metro quadrado, se sobreviverem.


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