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Jack London, sempre atual

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            Quem foi bom leitor na juventude certamente deve ter se deliciado com algum livro de Jack London. Caninos Brancos e O Lobo do Mar foram traduzidos por Monteiro Lobato, e tiveram dezenas de edições no Brasil. Outro campeão foi O Chamado da Selva, que narra a história de um cão que puxa trenós no Alaska. Depois de muitos sofrimentos (naturais ou causados pelo homem) une-se a um bando de lobos, tornando-se líder da alcateia.

            O Chamado da Selva (também traduzido como Apelo da Selva e O Grito da Floresta) é obra fundamental da literatura norte-americana, e tornou o nome de Jack London reconhecido mundialmente. Autor de vários romances e contos, ele refletiu em sua obra muito das experiências que teve durante toda a vida.

            Jack (nascido John Griffith Chaney) nasceu pobre, em San Francisco, Califórnia. Não conheceu o pai, e teve uma infância difícil. Começou a trabalhar muito cedo numa fábrica de enlatados, numa época em que a jornada de trabalho tinha com frequência dezoito horas, e nunca menos que doze. Com dezesseis anos virou grumete, e em pouco tempo tinha seu próprio barco de ostras, perdido num incêndio. Alistou-se numa escuna pesqueira, e foi até o Japão. Na volta trabalhou numa fábrica de juta (experiência que rendeu o conto O Herege), e participou das primeiras revoltas de trabalhadores de Oakland, onde viu despertar sua consciência de classe. Foi vagabundo e andarilho, esteve preso algumas vezes, e aos 21 anos resolveu tentar a sorte no Alaska, em busca de ouro.

            Além de não encontrar nada, ainda contraiu escorbuto. As terríveis situações que vivenciou, porém, inspiraram sua nascente veia literária. Tentou estudar na Universidade da California, foi admitido nos exames, mas a falta de dinheiro impediu que concluísse os estudos. Trabalhava à noite na lavanderia limpando a roupa dos colegas, e acabou desistindo.

            Felizmente, foi salvo pela literatura. Ao ganhar 25 dólares com um conto publicado num jornal de San Francisco (Tufão na costa do Japão), London percebeu que este seria o caminho para ascender socialmente. Em 1902 publicou o primeiro volume de contos. Em 1903 vendeu os originais de O Chamado da Selva por 750 dólares. Dois dias depois outra editora, a poderosa Macmillan, comprou os direitos do livro por 2000 dólares, desenvolvendo uma ampla campanha publicitária para o lançamento. As vendas explodiram, e London nunca mais passou fome.

            A vida sofrida, a doença e as experiências humilhantes não fermentaram apenas um escritor, mas um militante. Filiou-se ao Partido Socialista, e dedicou grande parte de sua obra adulta a descrever o mundo dos operários, dos desempregados, dos miseráveis. A luta pela sobrevivência, seja na natureza, seja na civilização industrial, é o motor de sua criação.

Jack London

            Uma boa seleção destes contos “adultos” foi lançada no Brasil pela editora Expressão Popular. O volume é aberto com dois textos confessionais (O Que a Vida Significa Para Mim e Como Me Tornei Socialista) onde somos apresentados à visão de mundo do escritor.

            A ficção propriamente dita é desenvolvida nos nove contos seguintes, onde acompanhamos aventureiros solitários no Alaska, operários em greve em San Francisco, mexicanos miseráveis que sobrevivem lutando boxe, chineses estoicos condenados à morte, ladrões de joias, pais que não reconhecem o filho. Sem deixar de lado valores como o amor (Ao Sul da Fenda) e a amizade (O Pagão), o autor demonstra sua enorme capacidade de descrever um universo social até então pouco abordado na literatura americana, de forma intensa e profundamente humana.

            Jack London escreve de forma direta, sem rodeios. É um dos fundadores da moderna prosa ocidental, e influenciou dezenas de escritores, em todo o planeta. Nos últimos anos de vida projetou e construiu um barco, velejando até o Pacífico, e construiu um rancho na Califórnia, que hoje é tombado como Marco Histórico Nacional. Sua morte, aos 40 anos, é controversa. Segundo alguns, teve uma acidente ao ingerir uma dose excessiva de heroína, que tomava para aliviar as dores de uma uremia. Para outros foi realmente um suicídio.

            Não importa. A obra de Jack London ainda pulsa forte, e é leitura prazerosa e marcante. Evoluindo de um feroz individualismo para a construção de um ideal coletivo, como fez na própria vida, o escritor antecipou em sua literatura o grande dilema do capitalismo no século XX. Sua mensagem fundamental continua válida para todos que não desistiram de enfrentar o desafio de transformar o mundo: “Vejo à frente um tempo em que o homem deverá caminhar para alguma coisa mais valiosa e mais elevada que seu estômago.”

A crônica militante de Lima Barreto

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Embora seja reconhecido como um dos grandes escritores brasileiros, podemos afirmar que boa parte da obra de Afonso Henriques de Lima Barreto não está ao alcance do leitor contemporâneo. Por este motivo, a publicação do volume A Crônica Militante (Expressão Popular, 2016) merece aplausos e uma ampla divulgação.

            É claro que nos “tempos sombrios” em que vivemos (como bem definiu Raduan Nassar), não podemos contar com a chamada grande imprensa para isso. O pacto político-judicial-midiático que depôs um governo legitimamente eleito não pode ver com bons olhos os textos de um escritor anarco-socialista que denuncia as mazelas do capitalismo, mesmo que tenham sido escritos há quase um século.

            Antes de morrer, em 1922, Lima Barreto deixou pronto um volume (Bagatelas), enfeixando crônicas publicadas em várias publicações cariocas.  O escritor era crítico ferrenho da mídia oficial e chapa-branca, manifestando preferência por publicações marginais e independentes, anarquistas ou satíricas. Destas, a mais famosa foi a revista Careta, onde o autor de O Homem Que Sabia Javanês publicou sob diversos pseudônimos, a partir de 1915.

            Grande parte dos artigos desta coletânea foi escrita durante e após a Primeira Guerra Mundial (1914/1918), e analisa um mundo em convulsão social e política. Barreto escreve contra o racismo, defende a Revolução Russa, critica o imperialismo americano, ironiza os governantes da ocasião, deplora os assassinatos por “honra”, ataca o formalismo acadêmico na imprensa de seu tempo.

            De fato, em termos de linguagem, Lima Barreto é um precursor do Modernismo. Sua escrita é direta, muitas vezes irônica, embora pareça pedante a leitores do século XXI a quantidade de citações em francês ou latim de que lança mão. É como se o escritor, mulato, pobre e sem títulos, visto com certa desconfiança por sua militância política (e pelo alcoolismo contumaz), se sentisse na obrigação de “deitar cultura”, demonstrar erudição.

            Os organizadores da coletânea (Claudia de Arruda Campos, Enid Yatsuda Frederico, Walnice Nogueira Galvão e Zenir Campos Reis) foram felizes em incluir um esclarecedor ensaio de Astrojildo Pereira, publicado na 2ª edição de Bagatelas. Fundador do Partido Comunista Brasileiro, em 1922, o intelectual ressalta que Lima Barreto não era marxista, nem mesmo tinha uma formação ortodoxa, mas era um humanista eclético que escrevia com “aguda intuição”.

         Incomoda apenas, na presente edição, o excesso de notas de rodapé primárias, que fazem o interessado interromper a leitura para ver se há algum significado especial, retomando a leitura irritado com a obviedade. Rodapé pra explicar o que é missa campal, galhofa, recluso, bretão ou imaculado, convenhamos, é fazer pouco da inteligência de qualquer um. Pra compensar, há no final um “elenco de nomes, títulos e lugares” de real valor, contextualizando vários ]personagens e locais citados nas crônicas.

            Reler e conhecer de forma mais profunda a obra e o pensamento de Lima Barreto é imprescindível. Homenageado na Flip-2017, o autor de personagens inesquecíveis como Policarpo Quaresma surpreende, em vários sentidos. Desde sua folclórica aversão ao futebol (que considerava uma imitação patética dos ingleses) até a incômoda atualidade de algumas afirmações, como a que emite após participar de um julgamento,  de que  “A massa dos jurados é de uma mediocridade intelectual pasmosa, mas isto não depõe contra o júri, pois nós sabemos de que força mental são a maioria dos nossos juízes togados.”

              Em vários momentos, soa profético: “  A crença no todo poderio do dinheiro, que entre nós se apossou primeiramente de São Paulo (…), vai avassalando todo o Brasil, matando as nossas boas qualidades de desprendimento, de doçura e generosidade, de modéstia nos gostos e nos prazeres, emprestando-nos, em troca, uma dureza com os humildes, com os inferiores, com os desgraçados, com tolas e infundadas superstições de raça, de classe, etc., nesta época de grandes e justas reivindicações, ameaça-nos de morte, ou se não de lutas sangrentas.”

                 Em outro artigo, vai ao âmago da questão.  “Em resumo, porém, se pode dizer que todo o mal está no capitalismo, na insensibilidade moral da burguesia, na sua ganância sem freio de espécie alguma, que só vê na vida dinheiro, dinheiro, morra quem morrer, sofra quem sofrer.” 

          Lima Barreto tematizou várias vezes esse sentimento (ver o conto A Nova Califórnia, que adaptado para o cinema talvez tenha se tornado o melhor filme da Vera Cruz, Osso, Amor e Papagaios, em 1957) e continua sendo fundamental para entendermos o Brasil.

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