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A humanidade está ficando burra?

Um pequeno artigo de Christophe Clavé tem causado certo rebuliço nas redes e nas comunidades científicas da área de humanas desde 2020, quando foi publicado. Ele afirma categoricamente que o QI da humanidade, que vinha em constante crescimento, entrou em declínio nos últimos 20 anos. Seria uma inversão da tese proposta em 1982 pelo psicólogo americano James Flynn, que detectou o aumento constante do índice de acertos da população mundial em testes de QI.

Um dos fatores, segundo Clavé, é o empobrecimento da linguagem. Segundo o franco-suíço, “não se trata apenas da redução do vocabulário utilizado, mas também das sutilezas linguísticas que permitem elaborar e formular pensamentos complexos. O desaparecimento gradual dos tempos (subjuntivo, imperfeito, formas compostas do futuro, particípio passado) dá origem a um pensamento quase sempre para o presente, limitado no momento: incapaz de projeções no tempo. A simplificação dos tutoriais, o desaparecimento das letras maiúsculas e a pontuação são exemplos de “golpes fatais” à precisão e variedade da expressão.”

O primeiro impulso dos indivíduos que foram formados lendo livros, enfrentando dissertações e escrevendo artigos acadêmicos é aplaudir com entusiasmo, mas a cautela aconselha colocar uma pitada de sal em algumas dessas afirmações.

Em primeiro lugar, quem é Clavé? Uma rápida pesquisa nos informa que não é um linguista ou cientista social, longe disso. É “professeur de stratégie & management”, e presidente de uma empresa de consultoria e investimentos com sede na Suíça. Tudo bem, pode até ser um executivo bem intencionado, preocupado com o que o que ele afirma ser um “empobrecimento linguístico” dos jovens. Preocupação lídima, independente da formação do indivíduo. Um médico, um engenheiro ou um músico podem ter o mesmo receio, ao ouvir o filho adolescente se comunicar com um vocabulário de trezentas palavras.

Em segundo lugar, falta comprovação científica da bombástica afirmação. De onde ele tirou esses dados? Tudo bem, vamos considerar que é apenas um pequeno artigo opinativo, não uma tese acadêmica. Podemos conceder o direito da dúvida, mas seria de bom tom trabalhar com informações, senão estatisticamente comprovadas, ao menos aceitas pelo senso comum.

Não é raro festejarmos a inclusão de uma palavra nova no dicionário. Mas também é comum esquecermos aquelas palavras que ali jazem entre pares, sem utilidade na era moderna. Se um parnasiano, ou mesmo um modernista, pudesse viajar no tempo e ouvir nossas conversas em pleno século XXI, haveria de achar nossa linguagem muito pobre. As reuniões sociais, discursos e artigos jornalísticos extinguiram os rapapés verbais e cafunés adjetivos, adotando formas mais diretas. Tornamo-nos mais pobres de sentido – ou inteligência, vá lá –  por esse motivo?

Arrisco sugerir que outras linguagens e veículos foram ocupando o espaço da língua escrita do século XIX. Antes tudo deveria ser transmitido através da palavra, do verbo, o que exigia uma gama bastante ampla de vocábulos. Com a explosão midiática da segunda metade do século XX, as coisas, situações, estados, emoções, etc., podem ser sugeridas de outras formas. Não é à toa que uma expressão como “uma imagem vale mais que mil palavras” só poderia ter surgido no século da fotografia, do cinema, da televisão e da internet, embora seja tão gasta que alguns supõem que exista desde a Grécia antiga.

No entanto, é preciso dar crédito a Clavé por levantar a lebre. (Repare, leitor, que estou usando algumas expressões fora de moda para acrescentar certo tempero ao debate). Uma coisa é a capacidade de síntese, outra coisa apelar pra um emoji. E aproveito para, do fundo de minha ignorância multidisciplinar, sugerir que se de fato há um declínio do QI da humanidade, também se deve ao abandono de algumas questões básicas de matemática e raciocínio lógico.

Ninguém mais faz conta de dividir ou multiplicar. Somar, só se for com menos de dois dígitos. O celular, o computador e todos os aplicativos fazem isso em três toques. É corriqueiro chegarmos ao caixa da padaria e vermos o funcionário calcular numa maquininha quanto é um litro de leite mais 4 pãezinhos, coisa que o Seu Manoel da esquina dos anos 60 (20? 30? 40?) fazia num piscar de olhos. Nem vou falar de regra-de-três! Mas devemos concluir que o Seu Manoel era mais inteligente que o atendente da padaria de hoje? Ou apenas que ele não tinha outras ferramentas senão o treinamento para fazer contas mentais?

Lembro-me vagamente de um conto de ficção científica, que li quando jovem, em que num longínquo porvir as pessoas perderam completamente a capacidade de fazer cálculos. Os computadores fazem tudo, e não ocorre a ninguém usar os métodos primitivos do lápis, papel e cérebro. Até que surge um garoto-prodígio que sabe fazer contas. A rede mundial detecta outros, que são colocados numa escola especial, e o conto termina com um monitor-cientista declarando de forma triunfante que “em breve a humanidade saberá extrair uma raiz quadrada!”.

Enfim, são ilações. Não posso concordar com a afirmação de Clavé de que a humanidade está ficando mais burra, sem provas concretas, aferidas e sistematizadas. Sei que em vários momentos isso nos parece evidente, como no Brasil em 2021, mas é um raciocínio movido mais pela emoção que pela razão. A população do planeta aproxima-se de 8 bilhões, e tudo cresce de forma exponencial: a quantidade de ignorantes, de gênios, de pessoas cultas, de artistas e de criminosos. Sempre vai parecer que estamos cada vez mais cercados de gente estúpida, porque não conseguimos distinguir os demais da multidão. Mas isso é uma questão estatística, não linguística.

O artigo de Clavé termina com um apelo para que pais e professores “ensinem e pratiquem o idioma em suas mais diversas formas. Mesmo que pareça complicado. Principalmente se for complicado. Porque nesse esforço existe liberdade. Aqueles que afirmam a necessidade de simplificar a grafia, descartar a linguagem de seus “defeitos”, abolir gêneros, tempos, nuances, tudo que cria complexidade, são os verdadeiros arquitetos do empobrecimento da mente humana.” 

É evidente que há uma motivação humanista, quase iluminista, em nosso professeur. O problema do artigo se circunscreve, portanto, ao desenvolvimento de uma boa ideia a partir de um argumento sem comprovação. É uma casa bonita erguida sobre areia fofa.

A Chegada e seu desafio

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Você conhece a hipótese de Sapir-Whorf? Criada nos anos 30 por Edward Sapir e Benjamin Whorf, também ficou conhecida como relativismo linguístico, e influenciou antropólogos, linguistas, semiólogos e psicólogos por algumas décadas.

            Parte de uma proposição do naturalista Humboldt (1767/1835), de que o homem aprendeu primeiro a linguagem, e depois a pensar. Ou seja, é impossível haver pensamento “puro”, uma vez que ele só pode ser expresso através da linguagem.

            Sapir e Whorf desenvolveram esta linha de raciocínio sugerindo que o universo cultural em que as pessoas estão imersas determina sua compreensão do mundo. Dando um exemplo simplista, se uma tribo primitiva só tem seis palavras para definir as cores (branco, preto, azul, amarelo, vermelho e verde), literalmente eles só enxergam estas cores. Não existem nuances, já que não há palavras para exprimi-las. Quando estes indivíduos aprendem uma nova língua, seu universo sensorial se amplia, e eles passam a enxergar coisas que não viam antes.

E nem precisa ser primitivo! Digamos que você aprendeu, em inglês, a palavra serendipity, que não existe em português. Significa algo como a felicidade de encontrar algo que você não estava procurando. Uma mistura de surpresa e satisfação. Você incorpora este novo sentimento ao seu repertório, passa de fato a sentir isso. Ou, no sentido inverso, um inglês que aprende a palavra saudade, em português.

            Agora, esqueça tudo isso. Esta hipótese hoje está superada pelo chamado cognitivismo, uma teoria mais ampla, que utiliza ferramentas mais modernas, como sistemas de processamento da informação. Mas suas marcas ainda persistem em certas áreas, principalmente a antropologia funcionalista e a literatura de ficção. Ponto de partida rico para explorações indagativas, o encontro entre culturas e civilizações diferentes costuma render boas histórias.

            É sobre a hipótese de Sapir-Whorf que é construído o filme A Chegada, do diretor canadense Denis Villeneuve. Só que aqui a tribo primitiva somos nós, “civilizados” do século XXI, perante a visita de misteriosos seres alienígenas. Doze naves de aspecto estranhamente rústico (parecem conchas de pedra, escuras e rugosas) surgem simultaneamente em vários pontos do planeta. As grandes potências mobilizam suas armas, na iminência de um ataque. As tentativas de comunicação são infrutíferas, pois os sons emitidos pelos visitantes parecem apenas grunhidos em baixa frequência.

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            Entra em ação a protagonista, Louise Banks (Amy Adams, em interpretação densa e angustiada), uma linguista, que é convocada pela Nasa para tentar se comunicar com os alienígenas. Formará uma dupla com o físico Ian Donelly, vivido pelo ator Jeremy Renner. Juntos, fazem contato com os enigmáticos Heptapods, que utilizam uma sofisticada linguagem iconográfica, baseada em círculos de bordas irregulares.

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            Circularidade. Este é outro conceito-chave do filme. A doutora Banks é afligida por um drama pessoal, mostrado em aparentes flashbacks, de forma intensa e dolorida. À medida que vai decodificando a linguagem circular dos alienígenas, vai ressignificando o mundo/a vida de uma nova forma. Presente, passado e futuro se interpenetram de forma engenhosa, e o drama individual reflete-se no coletivo. A humanidade pode se autodestruir, se ela não entender o que está se passando.

            Baseado num conto de Ted Chiang, a história carrega uma mensagem pacifista: se não compreendermos o que queremos, quem somos, vamos nos aniquilar. “Na guerra não existem vencedores, só viúvas”, ensina uma frase (em mandarim) pronunciada em momento crucial do filme. O diretor optou por uma estética visual sombria, enevoada, bem distante dos brilharecos habituais da ficção científica, direcionando nossa atenção para o texto, o enredo, o desafio mental proposto.

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            Indicado para várias categorias no Oscar 2017, levou apenas um prêmio secundário, como era de se esperar. É um filme muito mais “europeu” que americano, aspira a ser Tarkovski e não Spielberg, embora fale de contatos imediatos de terceiro grau. Suas preocupações não são tecnológicas, mas existenciais, como sempre ocorre na melhor ficção científica. A Chegada certamente não é um filme perfeito, mas belo, pungente e necessário. Já é um clássico, entre filmes tão lineares como seus concorrentes.

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