Arquivo para junho \13\-02:00 2019

Manuscritos reencontrados

DIARIO_DA_CASA_ARRUINADA

Por coincidência, li dois romances em sequência que se iniciam com o mesmo artifício: são “transcrições” de manuscritos encontrados por acaso. Veneza, do veterano Alberto Lins Caldas, remete a um códice do século XVII ou XVIII, e aproveita para mergulhar numa linguagem erudita, tentando captar o espírito da época (ver resenha anterior).

Diário da Casa Arruinada, do cearense Tiago Feijó, trilha outro caminho. A trama se passa em pleno século XXI. Um caderno encontrado num cofre aberto, dentro de uma casa em ruínas, que vai revelar um casamento em crise e um segredo pecaminoso.

Renderia um ensaio esse pretexto de escrever a partir de um documento alheio. Lembro-me de João Ubaldo Ribeiro, atribuindo a uma mulher desconhecida os originais d’A Casa dos Budas Ditosos, publicado em 1999. Outros exemplos podem ser garimpados na história da Literatura, se alguém tiver tempo e disposição para mergulhar nessa pesquisa. (dicas: Monogatari, Cervantes, Potocki, Poe…)

Mas vamos ao romance de Feijó, publicado pela Penalux em 2017. A ação se passa no curto tempo de 25 dias, quando o autor-narrador resolve parar de fumar. Num preâmbulo cheio de citações, o personagem se revela um escritor frustrado, preocupado com forma e estilo, ao mesmo tempo em que nos apresenta seu casamento em crise e o progressivo distanciamento da mulher, Madalena. Parêntesis: ninguém aguenta mais romance-de-jovem-autor-em-crise! Deve haver mais de trinta na literatura brasileira contemporânea. Fecha parêntesis.

Feijó (ou o personagem Quim?) transubstancia com afinco a gradativa tensão causada pela síndrome de abstinência do cigarro, ao mesmo tempo em que vai clareando as relações corrompidas entre Quim e Madalena. Sem fumaça, vemos as coisas de forma mais transparente. A pequena Selene, filha do casal, e a caseira Irene, gravitam em torno do personagem, de forma discreta. Quem domina a mente de Quim é Madalena, a jovem artista plástica de costumes libertários por quem se apaixonou há alguns anos. Construída de forma ambígua, como uma moderna Capitu, ela é ao mesmo tempo solar e lunar, ilumina e sombreia os seus pensamentos.

A relação está tão degradada que a abstinência também é sexual. Os volteios da imaginação febril de Quim passam por suspeita de traição, a lembrança de um estranho amigo de juventude, os raros encontros com o pai, a presença obsessiva do desejo de fumar e de ser amado por Madalena.

Há certa ansiedade de romancista estreante em mostrar que leu os clássicos, polvilhando de citações e referências cada capítulo. Um deles é escrito em forma de peça teatral, outro descreve o personagem raspando a barba, como se isso, de forma simbólica, o transformasse em outra pessoa.

Como Joa(quim) Maria Machado de Assis faria, o último capítulo encerra uma revelação, a chave de ouro tão cara aos mestres do século XIX. Alguns certamente irão se surpreender, outros desconfiarão. As referências a autores gregos são indícios, pistas que Tiago Feijó vai plantando no caminho, ao mesmo tempo em que usa seu talento para construir alternativas ilusórias, regadas a vinho, erudição e pitadas de ironia. O romance, longe de ser perfeito (existe perfeição, em literatura?), deixa entrever um autor capaz de voos maiores.

(Diário da Casa Arruinada, Ed. Penalux, 167 páginas, 2017)

Outra Veneza

VenezaPor mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais.”

Com estas palavras Walter Benjamin inicia seu famoso ensaio O Narrador, onde questiona (entre outras coisas) a crise do romance como forma literária que atingiu o apogeu no século XIX, e mostrava certo esgotamento no início do século XX. Benjamin escreveu na década de 30, e provavelmente reveria esta opinião se vivesse mais algumas décadas.

O romance reinventa-se? Melhor dizer que alguns autores inventam, muitos repetem fórmulas, e alguns retomam paradigmas com uma nova abordagem.

Alberto Lins Caldas pertence à última categoria. Poeta praticante, contista experimentado e romancista reincidente, é antes de tudo um cultor da língua. Explora as possibilidades do verbo em todas as suas conjugações, flerta com o latim, manipula o sentido das palavras e persegue a recriação de mundos imaginários.

Em Veneza (Penalux, 2016, 181 páginas), o ponto de partida é atraente, mas não o principal atrativo. O autor afirma no prefácio ter encontrado um texto perdido num arquivo “de um Estado que não quero recordar o nome”, escrito em francês do século XVIII por um certo Pierre Bourdon, aventureiro cuja narrativa se inicia com uma fuga do leito de uma mulher casada, para fugir de um flagrante, em Veneza.

Acompanhado de seu fiel criado, Mouro, embarca num navio e vem parar em latitudes austrais. Desembarca numa outra “Veneza” nunca nomeada (mas não esqueçamos que o autor é pernambucano!), onde a descrição de cenários, comidas, cheiros e costumes remetem aos clássicos relatos de viajantes e naturalistas, que influenciaram até Gilberto Freyre.

A grande viagem de Veneza é a linguagem. Caldas se diverte escrevendo de forma barroca, cheia de latinismos e citações, ao mesmo tempo em que, na pele do personagem, coloca questões estéticas e existenciais. O narcisismo, a mulher como objeto idealizado de desejo, a relação nunca bem explicada entre servo e senhor, a imensidão de uma alma inquieta aprisionada numa existência pouco mais que medíocre, salva pela vontade de deixar um depoimento para a posteridade.

O cavaleiro Pierre encontra um tradutor à altura. O romancista Alberto escolhe um caminho árduo, mas pleno de delícias para quem ousar trilhá-lo. Na contramão do senso comum, escreve no século XXI um romance sem facilidades, sem mesmices, entranhado de humor temperado com certa dose de melancolia, onde talvez falte apenas um grande final. Mas é a transcrição de um manuscrito, um velho Códice, de onde não podemos esperar uma arquitetura romanesca como aquela que Benjamin julgou esgotada, certo? Grand finale é coisa de romance do século XIX, coisa com a qual Pierre Bourdon nunca chegou a imaginar.

Ofélia no século XXI

John_Everett_Millais_-_Ophelia_-_WGA15685

Um dos mais famosos quadros do século XIX é Ophelia, do britânico John Everett Millais (1829-1896). Inspirado em Shakespeare, representa a enlouquecida amante de Hamlet, que se deixa afogar após saber que este assassinou seu pai. A cena brutal é suavizada por um cenário primaveril, onde flores flutuam junto ao corpo inerte da jovem. Imagine um corpo boiando no rio Tietê e terá uma noção de como o artista romantizou o tema.

A história reporta que Millais contratou uma modelo para ficar imersa numa banheira durante dias, até conseguir reproduzir os cabelos e vestes flutuantes. Elizabeth Siddal quase morreu de pneumonia, mas acabou tendo as despesas médicas pagas pelo artista, e como acabou se tornando artista também, acabou perdoando a obsessão realista de Millais. Anos depois, também se suicida, e me pergunto porque até hoje isso não rendeu um livro ou um filme na velha Albion.

Pois hoje vejo, nesse Aleph vertiginoso que é a internet, uma nova versão da morte de Ofélia. Não sei quem é o artista, mas gostaria de saudar sua verve amarga, seu senso de humor refinado e macabro, tão adequado ao século XXI. Hoje, 05 de junho, Dia Mundial do Meio Ambiente.

Ofélia

 

 

 

 

 

 

A danação da memória

danacao.jpg

O ancestral tema do menino pobre que cresce e sai de casa para ganhar a vida em outras paragens se confunde com as próprias origens daquilo que se chamou humanidade. Seja migrante por instinto, espírito de aventura ou sobrevivência, o ritual de abandonar o lar e construir outro destino faz parte da cultura oral e escrita de todos os povos, criando um arquétipo universal.

Luís Pimentel, ele próprio nascido no sertão baiano e morador do Rio de Janeiro, onde construiu sólida carreira como jornalista e escritor, retoma a narrativa mitológica, posicionando-a no cenário contemporâneo. Em Danação (7 Letras, 2019, 109 páginas), seu primeiro romance, acompanhamos um José sem sobrenome, que se envolve em um violento incidente na cidade grande, passando a ser perseguido pela polícia. Ou talvez não, porque nunca sabemos ao certo quem são seus perseguidores. E não é à toa que a namorada de José se chama Eneida…

A narrativa alterna reminiscências da infância sertaneja, onde é marcante a figura materna e a ausência do pai, com o desconforto presente, onde a sensação de não-pertencimento acentua a insegurança. As passagens se sucedem em perfeito imbricamento, com a notável inclusão de versos que abrem cada capítulo, como coros de tragédia grega, criando um terceiro plano narrativo de grande densidade, como observa Antonio Torres na orelha do livro.

A escrita de Luís Pimentel tem a sabedoria de não nos intimar; antes, nos intimiza. O personagem em fuga vai se construindo para o leitor através de suas lembranças infantis e afetivas, num movimento reverso ao tempo diegético da ação, onde sua vida está sendo destruída. A delicadeza de certas lembranças, também presente em versos como “noite sem escuridão/ o corpo menor que o fardo”, faz-nos desconfiar que há muito da alma do autor no personagem.

A referência a versos da música popular é outra marca característica de Luís Pimentel, um apaixonado pela cultura brasileira. O que fica ao final de Danação é uma sensação de maravilhamento, provocada pela forte coesão dos capítulos finais, onde a linguagem poética, antes delimitada em epígrafes, se funde à prosa. O eterno retorno, seja em busca do paraíso perdido, da infância ingênua ou da felicidade entrevista em algum desvão do percurso, se transfigura de forma simbólica, pois “tem muita estrada pela frente até chegar a Danação.” 


Arquivos