Hoje abro um jornalão de S. Paulo e vejo um anúncio imobiliário de página inteira, anunciando as vantagens de um prédio vizinho a um parque. Sob a foto de um picapau, a frase publicitária lapidar: “Seu futuro vizinho já está em obras.”
Nunca fui aluno exemplar. Sempre beirei o desastre nas matérias exatas, e até hoje sou péssimo em contas, principalmente as bancárias. Nas humanas até que me virava bem, gostava de mapas, de estórias e de História. Tinha uma inexplicável queda por Biologia, que se manifestava muito mais através da infantil atração por bichos, sem muita preocupação com taxonomia ou genética.
Não me tornei biólogo, mas um curioso por histórias (e estórias). E nas minhas leituras cotidianas, de jornais, revistas e até folhetos de propaganda, sempre me espanto com a profunda ignorância que a maioria dos redatores e jornalistas nutrem sobre a tal da Biologia.
Rara é a semana em que não leio alguém chamando aranha de inseto, ostra de crustáceo ou gênero de espécie. Essas caneladas doem, mas inúmeros chutes na trave passam despercebidos para a maioria dos mortais.
O redator do citado anúncio deve pensar que um picapau bate o bico em troncos para abrir um buraco que lhe servirá de morada. Assistiu muito desenho animado na infância, mas não teve a menor curiosidade de conferir se o que escreveu era correto. Aprenderia que todo picapau procura insetos para se alimentar, em troncos velhos e secos. Se a foto fosse de um joão-de-barro fazendo o ninho, a legenda estaria adequada.
Nunca esqueci do texto de um célebre jornalista carioca, intelectual respeitado, que escreveu certa vez sobre o suicídio coletivo dos lêmures. Pobres lêmures! Pequenos primatas confinados na ilha de Madagascar, nem sequer suspeitam da lenda acerca dos lemingues, roedores escandinavos suspeitos de se atirar ao mar em bandos, em crise existencial bergmaniana coletiva.
Na verdade, o jornalista cometeu dois erros, porque essa história de suicídio em massa é um mito criado pela vontade tão humana de atribuir motivações psicológicas aos animais.
Quando a população cresce muito, os bichinhos migram em busca de alimento. Como aquela terra é estreita e cheia de fiordes (o mapa da Escandinávia era o mais difícil de desenhar, lembro bem!) os primeiros da tropa chegavam à beira do precipício e eram empurrados pelos seguintes. O resto é lenda, criada por nada menos que Walt Disney.
Mas vamos a exemplos brasileiros, antes que a Amazônia acabe. Aliás, o Estadão lançou um belo caderno especial sobre o tema, com poucos erros biológicos, mesmo esquecendo que a anta é o maior animal da região. Claro, lá está a clássica confusão de “ascendente” por “descendente”, num artigo que fala de ancestrais indígenas. Mas essa já saiu dos domínios da biologia, e multiplicou-se como praga por todas as áreas do conhecimento. O jovem e celebrado romancista Daniel Galera tascou, em Mãos de Cavalo, uma enfermeira gaúcha que tem “descendência” européia. Terá a moça emigrado para ter filhos na Europa, voltando a Porto Alegre para servir num posto de saúde da periferia? Pouco provável. Mas o xará apenas incorre num erro generalizado, quase um vício de linguagem. O romance tem bons momentos, não é má leitura. Faltou revisão.
Os poetas são perdoados, normalmente, porque não se cobra lógica de poesia. Letrista de música então, nem se fala. Mesmo quando Djavan diz que “O amor (…) é um lobo correndo em círculos pra alimentar a matilha”, relevamos o fato de que o coletivo de lobo é alcatéia. Matilha é de cães de caça, ensina o Houaiss. Talvez o amor djavaniano seja tão louco que alimente os inimigos, e estejamos portanto diante de uma concepção revolucionária e aterradora de amor. Gênio!
Mas Djavan nasceu em Alagoas, e falta de proteína na infância pode causar seqüelas irreversíveis. A ignorância biológica é mais inexplicável quando falamos de pessoas cultas, nascidas ou criadas em metrópoles como New York ou São Paulo. Que dizer de Cole Porter e seu tradutor brasileiro, Carlos Rennó?
A canção Let’s Do It (Let’s Fall In Love), do grande compositor americano, é um primor de ignorância biológica. A esmerada versão de Rennó também sacrificou a biologia pela graça e beleza das rimas. Aos poetas, tudo é permitido. Tudo?
Façamos (vamos amar) é um belo achado para o título da canção, gravada por Chico Buarque e Elza Soares. Há idéias engraçadas, como no verso “tico-ticos no fubá fazem” (amor), e não vamos implicar por causa disso. O sentido aí é brincar com o clássico choro de Zequinha de Abreu, não com o lugar onde tico-ticos fazem amor (provavelmente em qualquer lugar).
A coisa começa a complicar quando “dourados no Solimões fazem”. Dourados são peixes típicos da bacia do Prata e do São Francisco. Informação restrita a pescadores, vamos conceder. Criaturas escamosas são pouco amigáveis, e refratárias ao contato humano. Talvez por isso causem confusões como no verso “Salmões no sal, em geral, fazem”. Os deliciosos salmonídeos saem dos oceanos e migram para as águas doces para procriar. Portanto, no sal, não fazem…
O ápice desta letra, para mim, é “as taturanas também fazem”. Será que o criativo letrista esqueceu que taturanas, lagartas e manduruvás são filhotes de borboletas e mariposas? As inocentes criaturas rastejam, comendo suas folhinhas, sem ter a menor idéia de que um dia voarão e farão amor. Enfim, a não ser que sejam pervertidas ou afetadas pelo aquecimento global e a poluição, taturanas não fazem, e nem têm o equipamento necessário para isso.
Chico Buarque, que não costuma dizer besteira, cantarolou essas. Que dizer às crianças, depois disso?
PS: Os links sobre lemingues foram copiados do Paraíba, que está ali na lista de favoritos!