Arquivo para março \30\-02:00 2008

Um breve adeus

Como disse há dois posts, estou partindo para uma viagem que os comportados chamarão, no mínimo, de esquisita.

Embarco neste domingo, dia 30/03. Vou percorrer, durante vinte e tantos dias, o sertão nordestino. Junto comigo vai uma equipe de gravação (3 pessoas), captando imagens e depoimentos sobre cooperativas, agricultura familiar e experiências de economia solidária.
A coisa começa em Catende (PE), na histórica usina de açúcar que há dez anos funciona em auto-gestão. Daí vamos a lugares tão inusitados como Pajeú (que “vai dar no São Francisco”…), Tauá, São João do Arraial, Tabira, São José do Egito, Afogados de Ingazeira, Solidão, Picos, Maracanaú e mais alguns de passagem.
Rodaremos pelo interior de Pernambuco, Piauí e Ceará, gravando a produção de açúcar, algodão, mel, castanha de caju, babaçu e também a experiência de bancos populares.
Quase um mês sem Internet, com pouco contato, “sem rádio e sem notícia de terra civilizada”.
Epero voltar com boas histórias para contar. Até lá!

Violas, rabecas & congada

Violas

Há muito tempo me pergunto por que não existe no Brasil (“o país mais musical do mundo”, como não cansam de trombetear), um museu do instrumento popular brasileiro. Ou da música popular brasileira.

Quem gosta de nossa música e quer conhecer suas origens, ou viaja sertão adentro ou se perde nos raros “museus do folclore”, que são um verdadeiro bricabraque.

Pois esta é a última semana de uma das exposições mais bonitas sobre instrumentos populares, principalmente violas e rabecas, recolhidas pelos pesquisadores Sandra Abrano e Valmir Rosa, ilustres moradores do Butantã. Ela, ceramista, ele, luthier. Ambos apaixonados pelas danças, músicas e instrumentos populares brasileiros.

No domingo, 30/03, às 10 da manhã, haverá festa com a congada de São Benedito, de Cotia, que se apresentará na Casa Bandeirista do Sítio da Ressaca (onde está a exposição), junto ao Centro Cultural Jabaquara.

Estive lá há um mês, e vi uma linda apresentação de Dança da Fita. São coisas assim que alimentaram a obra de gente como Mário de Andrade, Villa-Lobos, Guimarães Rosa, Suassuna, coreógrafos, cineastas, poetas e artistas plásticos, finos destiladores das formas mais originais de nossa cultura.

Recomendo este mergulho na arte popular, de vez em quando. Faz um bem!…

Dança das Fitas

Delícias da Língua 5

Há muito tempo “aurélio” é sinônimo de dicionário, no Brasil. Aurélio Buarque de Holanda nunca deixou que incluíssem o verbete no seu dicionário. Modéstia?

O Houaiss, mais completo, nunca incluiu. Inveja?

Uma usina de domingo

Usina Catende

Em 2006 conheci a histórica usina de açúcar de Catende. Fiz uma reportagem sobre a cooperativa, um marco na história dos trabalhadores brasileiros.

A centenária usina, que já foi a maior do Brasil, chegou a construir, nos anos 20, uma linha férrea de 140 km para o transporte do açúcar até o porto de Recife. Depois de mudar de dono várias vezes, faliu em 1995, deixando em apuros empregados, agregados, plantadores e cortadores de cana de vários engenhos ao redor.

Com os bens arrestados, a solução foi se unirem em cooperativa. Hoje, a usina está produzindo e alimentando centenas de famílias em cinco municípios, funcionando em sistema de autogestão. Os antigos empregados administram toda a produção, e com tal competência que diariamente trabalhadores de usinas vizinhas vêm ali pedir emprego. É motivo de orgulho trabalhar na mítica Usina Catende.

Passei lá uma noite inesquecível, conversando na varanda da casa grande com três cubanos que vieram conhecer o lugar e aprender a… fazer açúcar! Ensinei a eles os versos de Ascenso Ferreira. Infelizmente, o trem que ia danado pra Catende está desativado, mas sonhei que viajava nele, naquela noite.

Mal sabia que, menos de dois anos depois, estaria de volta. É onde estarei domingo que vem, para realizar um documentário. E por isso, não haverá post no dia 30/04. Deixo esta foto, tirada às 6 horas da manhã. Só o apito da usina para me fazer levantar a esta hora e ver a luz mágica que se derrama sobre o rio Pirangi!

Fotografia de invenção

Fósforo

Milton Mota, artista que investiga e expande os limites da fotografia, me apresentou ao espanhol Chema Madoz.

O cara cria intrigantes composições, numa atmosfera que ora lembra os surrealistas, ora remete aos mestres da fotografia da primeira metade do século XX.

Entre o paradoxo e a metáfora, as imagens agregam novos significados a objetos justapostos, como faziam os dadaístas, mas com um tratamento de luz e um sentido de equilíbrio plástico que resulta numa atmosfera clássica, algo retrô.

Enfim, fotografia de invenção. Confira!

Chema Madoz

Boi no Morro do Querô

Dizem que reforma de casa tem três fases: A do entusiasmo, a do desespero e a da exaustão. Estou na última, e isto explica ter riscado poucos fósforos por aqui nos últimos dias.

Mas está chegando ao fim (ou melhor, acabou o dinheiro). Ontem dispensamos os pintores e resolvemos nós mesmos dar os últimos retoques. Vou passar o feriado lixando, pintando, envernizando e limpando toneladas de lixo.

Mesmo assim, dá tempo pra assistir à mais bela festa de rua de São Paulo, ali no Morro do Querosene, pertinho de casa. O Bumba-Meu-Boi, comandada por Tião Carvalho e o pessoal do Grupo Cupuaçu há mais de 20 anos, reúne gente colorida e bonita, muitos estudantes, dançantes e brincantes. Tem barraquinhas com tapioca, pernil, pastel, cuzcuz e muita cerveja.

Sábado de Aleluia é o nascimento do Boi, que é batizado no mês de junho e morre no fim do ano, perto de Finados. E renasce no ano seguinte, lógico, pois aí está a graça da coisa. Também se apresentam grupos de maracatu, boizinho-mirim, caboclinhos, cantadores e cirandeiros. Até Lia de Itamaracá já tive a sorte de ouvir no pedaço.

A comunidade maranhense da cidade soube manter acesa no Butantã uma das mais belas tradições populares brasileiras, com toadas lindas e aquele indescritível ritmo das matracas. Só vendo (e ouvindo)!

Festa do Boi

Delícias da Língua 4

Serélia

Aquário era, originalmente, um espaço cheio de água (do latim aqua).

Piscina, um lugar cheio de peixes, ou onde se criavam peixes (do latim piscis).

Por quais caminhos linguísticos a piscina virou aquário e o aquário virou piscina é algo que sempre me intrigou. Afinal, as piscinas atuais, como conhecemos, causariam certo horror se contivessem piscis. Já os aquários são habitualmente povoados por estes escamosos seres sem que isso cause espanto. Mas se alguém resolver tomar banho num aquário…

Uma sereia numa piscina tornaria essa antinomia mais aceitável?

Um beco de domingo

Beco

São Paulo é grande demais para ser definida por uma foto. Os cartões postais tradicionais elegem a Avenida Paulista, o Anhangabaú ou o Parque Ibirapuera como símbolo, mas cada bairro, cada vila, cada rua tem um canto onde podemos ver algo que não estava nos guias turísticos.

A Vila Madalena ganhou fama nacional, primeiro como bairro universitário, reduto de artistas. Depois pela proliferação de bares e restaurantes. Hoje é um lugar de trânsito complicado, cheio de prédios, cada vez mais caro. Virou novela da Globo, a pá de cal no espírito ripongo dos anos 70/80.

Mas quem viveu por lá conhece o Beco.Tem nome de gente, mas ninguém lembra. Será sempre o Beco da Vila Madalena, galeria a céu aberto que grafiteiros e cineastas consagraram.

Passear pelo Beco num domingo de manhã é sempre agradável. Principalmente se a amoreira (a maior que já vi) estiver carregada.

Veja: Leia o blog do Nassif!

Impossível deixar de recomendar, com veemência, a leitura do blog do Luis Nassif, que revela a decadência corrompida da revista que mais vende no país. Um jornalista com posições claras, conhecido por suas análises econômicas (e, cá entre nós, também pela paixão pela música brasileira) , desmascara a impostura da revista (in)Veja e seus medíocres colunistas de aluguel.

Aliás, a revista Caros Amigos traz boa entrevista com o Nassif, neste mês. Uma leitura capaz de fazer março bem melhor que abril.

Ignorância biológica

Hoje abro um jornalão de S. Paulo e vejo um anúncio imobiliário de página inteira, anunciando as vantagens de um prédio vizinho a um parque. Sob a foto de um picapau, a frase publicitária lapidar: “Seu futuro vizinho já está em obras.”

Nunca fui aluno exemplar. Sempre beirei o desastre nas matérias exatas, e até hoje sou péssimo em contas, principalmente as bancárias. Nas humanas até que me virava bem, gostava de mapas, de estórias e de História. Tinha uma inexplicável queda por Biologia, que se manifestava muito mais através da infantil atração por bichos, sem muita preocupação com taxonomia ou genética.

Não me tornei biólogo, mas um curioso por histórias (e estórias). E nas minhas leituras cotidianas, de jornais, revistas e até folhetos de propaganda, sempre me espanto com a profunda ignorância que a maioria dos redatores e jornalistas nutrem sobre a tal da Biologia.

Rara é a semana em que não leio alguém chamando aranha de inseto, ostra de crustáceo ou gênero de espécie. Essas caneladas doem, mas inúmeros chutes na trave passam despercebidos para a maioria dos mortais.

O redator do citado anúncio deve pensar que um picapau bate o bico em troncos para abrir um buraco que lhe servirá de morada. Assistiu muito desenho animado na infância, mas não teve a menor curiosidade de conferir se o que escreveu era correto. Aprenderia que todo picapau procura insetos para se alimentar, em troncos velhos e secos. Se a foto fosse de um joão-de-barro fazendo o ninho, a legenda estaria adequada.

Nunca esqueci do texto de um célebre jornalista carioca, intelectual respeitado, que escreveu certa vez sobre o suicídio coletivo dos lêmures. Pobres lêmures! Pequenos primatas confinados na ilha de Madagascar, nem sequer suspeitam da lenda acerca dos lemingues, roedores escandinavos suspeitos de se atirar ao mar em bandos, em crise existencial bergmaniana coletiva.

Na verdade, o jornalista cometeu dois erros, porque essa história de suicídio em massa é um mito criado pela vontade tão humana de atribuir motivações psicológicas aos animais.

Quando a população cresce muito, os bichinhos migram em busca de alimento. Como aquela terra é estreita e cheia de fiordes (o mapa da Escandinávia era o mais difícil de desenhar, lembro bem!) os primeiros da tropa chegavam à beira do precipício e eram empurrados pelos seguintes. O resto é lenda, criada por nada menos que Walt Disney.

Mas vamos a exemplos brasileiros, antes que a Amazônia acabe. Aliás, o Estadão lançou um belo caderno especial sobre o tema, com poucos erros biológicos, mesmo esquecendo que a anta é o maior animal da região. Claro, lá está a clássica confusão de “ascendente” por “descendente”, num artigo que fala de ancestrais indígenas. Mas essa já saiu dos domínios da biologia, e multiplicou-se como praga por todas as áreas do conhecimento. O jovem e celebrado romancista Daniel Galera tascou, em Mãos de Cavalo, uma enfermeira gaúcha que tem “descendência” européia. Terá a moça emigrado para ter filhos na Europa, voltando a Porto Alegre para servir num posto de saúde da periferia? Pouco provável. Mas o xará apenas incorre num erro generalizado, quase um vício de linguagem. O romance tem bons momentos, não é má leitura. Faltou revisão.

Os poetas são perdoados, normalmente, porque não se cobra lógica de poesia. Letrista de música então, nem se fala. Mesmo quando Djavan diz que “O amor (…) é um lobo correndo em círculos pra alimentar a matilha”, relevamos o fato de que o coletivo de lobo é alcatéia. Matilha é de cães de caça, ensina o Houaiss. Talvez o amor djavaniano seja tão louco que alimente os inimigos, e estejamos portanto diante de uma concepção revolucionária e aterradora de amor. Gênio!

Mas Djavan nasceu em Alagoas, e falta de proteína na infância pode causar seqüelas irreversíveis. A ignorância biológica é mais inexplicável quando falamos de pessoas cultas, nascidas ou criadas em metrópoles como New York ou São Paulo. Que dizer de Cole Porter e seu tradutor brasileiro, Carlos Rennó?

A canção Let’s Do It (Let’s Fall In Love), do grande compositor americano, é um primor de ignorância biológica. A esmerada versão de Rennó também sacrificou a biologia pela graça e beleza das rimas. Aos poetas, tudo é permitido. Tudo?

Façamos (vamos amar) é um belo achado para o título da canção, gravada por Chico Buarque e Elza Soares. Há idéias engraçadas, como no verso “tico-ticos no fubá fazem” (amor), e não vamos implicar por causa disso. O sentido aí é brincar com o clássico choro de Zequinha de Abreu, não com o lugar onde tico-ticos fazem amor (provavelmente em qualquer lugar).

A coisa começa a complicar quando “dourados no Solimões fazem”. Dourados são peixes típicos da bacia do Prata e do São Francisco. Informação restrita a pescadores, vamos conceder. Criaturas escamosas são pouco amigáveis, e refratárias ao contato humano. Talvez por isso causem confusões como no verso “Salmões no sal, em geral, fazem”. Os deliciosos salmonídeos saem dos oceanos e migram para as águas doces para procriar. Portanto, no sal, não fazem…

O ápice desta letra, para mim, é “as taturanas também fazem”. Será que o criativo letrista esqueceu que taturanas, lagartas e manduruvás são filhotes de borboletas e mariposas? As inocentes criaturas rastejam, comendo suas folhinhas, sem ter a menor idéia de que um dia voarão e farão amor. Enfim, a não ser que sejam pervertidas ou afetadas pelo aquecimento global e a poluição, taturanas não fazem, e nem têm o equipamento necessário para isso.

Chico Buarque, que não costuma dizer besteira, cantarolou essas. Que dizer às crianças, depois disso?

PS: Os links sobre lemingues foram copiados do Paraíba, que está ali na lista de favoritos!


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