Incendiando a imaginação

A capa e o título insólito flertam com o surrealismo, à primeira vista. A leitura dos 43 contos curtos do volume, porém, vai expandir as possibilidades estéticas e formais, não se enquadrando em um gênero específico. Há textos mais densos, que colocam o leitor em frente aos dilemas e angústias do ser humano, e outros mais rarefeitos, que requerem a sensibilidade de quem sabe apreciar a beleza das nuvens.

Assim é o livro Como Escovar os Dentes Num Incêndio, de Marcílio Godoi (Patuá, 2023, 217 p). Cada conto é o nome de um ou uma personagem (Carmen, Renata, Augusto, Wesley, etc.), que podem ter raízes concretas e atitudes abstratas, ou vice versa. Uma mulher que tem um pé maior que o outro. Um homem que escreve epitáfios gongóricos. Um outro que perde coisas. A mulher atravessada por setas. A jovem que leva as cinzas do pai pra passear de bicicleta.

Algumas referências a personagens reais ganham relevo, na paisagem fantasmagórica. O conto Getúlio remete a Getúlio Vargas, mas tem um narrador surpreendente. O craque da sinuca Carne Frita é personagem principal de um causo. O narrador cujo pai vai se transformando em árvore lembra Guimarães Rosa, certamente. É provável que outros personagens, que para nós parecem ser produto de pura ficção, façam parte da galeria pessoal do autor. Não importa.

Estamos diante de um mosaico de retratos, ou esboços de retratos, costurados pela linguagem refinada de Marcílio Godoi. Mestre em Crítica Literária e Doutor em Letras, o polígrafo mineiro já publicou romances (Etelvina), literatura infanto-juvenil e poesia. Jamais utiliza a brutalidade das ações ou a crueza descritiva, tão ao gosto de alguns ficcionistas contemporâneos, para compor suas narrativas. Prefere a linguagem poética, pontilhada de metonímias e imagens inusitadas, e se delicia com palavras inusuais e pitadas de humor extravagante. Bebe na fonte de expressões populares, distorce chavões e inventa significados. Há algo de cortazariano impregnando a leitura.

Ao final, não temos certeza se lemos uma coletânea de crônicas poéticas, um conjunto de esquetes biográficos ou especulações sobre os caminhos tortuosos da loucura que, em maior ou menor grau, afeta toda a humanidade. A variedade de ritmos, as mudanças de tom e as alternâncias de linguagem contribuem para o resultado polifônico do volume. E o mais surpreendente é que esta indeterminação estilística parece ser algo muito planejado e bem executado, incluindo a capa, que também é criação do autor. Coisa de quem domina o ofício narrativo e sabe onde quer chegar.

Comentário sobre As Aparências

Passado mais de um mês do lançamento virtual do volume de contos, é hora de fazer alguns comentários. Aliás, os retornos tem sido bem positivos, e fico na maior dúvida se quem leu e ficou quieto não gostou ou tem vergonha de dar palpite.

Tenha não, minha filha, pode criticar à vontade! Sou roteirista profissional há mais de 30 anos. Tudo o que escrevo passa por impiedoso escrutínio de clientes, diretores, produtores, com rasuras, emendas, adendos, troca de seis por meia dúzia, alguns palpites pertinentes, muitos impertinentes. É um eterno confronto, mas sempre entro no ringue sabendo que vou levar porrada, mesmo que vença a luta.

Curiosamente, em literatura de ficção as pessoas tem certos escrúpulos. “Se eu falar que não gostei, será que perco o amigo?”. Claro que há uma diferença básica de um roteiro para televisão: o texto está pronto, acabado, ninguém pode mais mexer. Mas isso não impede de comentar algo do tipo “eu teria gostado mais se Maria casasse com Joana, e não com João”. É um comentário que revela algo sobre o leitor, que abre uma porta pra outra perspectiva ficcional, para outro tipo de conversa, bem melhor que o silêncio. Se ouvir algo como “achei uma droga!”, concluirei imodestamente que não é o tipo de leitor que aprecia o que escrevo. Apenas isso. Os leitores – sou um deles! – tem gostos muito diversificados, paciência.

Vamos aos amigos. O velho parceiro da Revista Música Brasileira, poeta e escritor de mão cheia (embora preferisse o bolso cheio, como todos nós) Luís Pimentel, foi um dos primeiros a aplaudir. Classificou o livro como “sedutor”. Creio que foi cativado pelo olhar da mulher da capa, obra de Lenio Braga.

O professor Claudemir Belintane, também amigo e escritor, levanta uma interessante questão formal da literatura contemporânea. Destaca que eu escrevo histórias com começo, meio e fim, não transferindo “ao leitor o trabalho de dar um final, (…) como se nisso encerrasse o prazer todo do ato de ler.”

Verdade. Os finais abertos eram novidade em meados do século XX, influenciaram o cinema dos anos 60 (Nouvelle Vague, Fellini) e se desgastaram rapidamente. No entanto, até hoje tem muita gente que usa o tal “final aberto” como muleta, pra disfarçar a incapacidade de resolver um enredo, seja literário ou audiovisual. Em cinema eu não aguento mais. Só não saio no meio do filme porque é sempre no fim!

Chico Lopes, escritor de vasta e premiada obra, autor da apresentação de meu primeiro romance, troca ideias com Belintane, e elogia a maneira como inseri elementos mitológicos em alguns contos (Teseu e As Águas do Tapajós). Verdade, a maior parte dos contos carregam referências, seja a outras histórias e lendas, seja a personagens reais. Minha literatura não é impermeável a tudo que aprendi, que ouvi, que li, que conheci, que me envolveu e emocionou em certos momentos da vida. Deixaram marcas em mim todo tipo de literatura: do Manual do Escoteiro até compêndios de mitologia grega, passando pelos cordéis nordestinos e os incontáveis contos e romances brasileiros e universais, que ainda fazem parte de minha dieta.

Isso é bem diferente de escrever sobre meus problemas amorosos, existenciais ou profissionais, como se vê por aí em grande parte da literatura feita pelos principiantes. Existe uma confusão crescente entre produzir uma obra literária de ficção e publicar páginas de seu diário íntimo. Essa relativização é típica da era da cultura massificada, onde falar do próprio umbigo ou dar receitas para curar o umbigo alheio (autoajuda) ganham o topo da lista dos mais vendidos.

Enfim, esse é um debate crucial para todas as artes, no século XXI. E fico feliz de ver como uma pequena obra, contos de um autor quase desconhecido, pode provocar reflexões percucientes. Mas, pensando bem, um verso, uma canção, uma frase num boteco, também podem. Basta haver bons interlocutores. Convido os tímidos à conversa!

Arte, cultura, política e revolução

O título do livro pode soar estranho, mas é uma citação de Adoniran Barbosa, em epígrafe:

Quantas dor de cotovelo/ Eu bebi na minha vida/ Espadona e Parreirinha/ Ponto Chique, Avenida,/ Outros bares da Ipiranga/ Eram a consolação.

Com o subtítulo Sociabilidade e Cultura em São Paulo nos anos 1960 e 1970, o volume dá continuidade ao projeto da autora, Lúcia Helena Gama, que  abordou um cenário semelhante nas décadas de 40 e 50 (Nos Bares da Vida, Senac, 1998). Publicado pelas Edições Sesc, o livro tem apresentação de Danilo Santos de Miranda e orelha de Luis Nassif.

            A obra é constituída basicamente de entrevistas com vários personagens que viveram o período, e também depoimentos e comentários encontrados em publicações diversas, de jornais e revistas até crônicas e textos literários. São atores, músicos, escritores, jornalistas e estudantes de diversas origens, que gravitavam em torno de bares, restaurantes, livrarias, teatros e cinemas da época, compondo um cenário efervescente de criação, polêmica e agitação política.

            Os anos 60 marcam o deslocamento deste epicentro cultural, muito focado nas faculdades da USP, ainda na rua Maria Antônia e adjacências, o Mackenzie, os botecos da Praça Roosevelt e do Centro Novo, e o início da ocupação boêmia de Pinheiros e Vila Madalena, motivados pela mudança da USP para o Butantã. A PUC, embora relevante, é situada num bairro residencial, de forma que seus estudantes também iam para os mesmos teatros e bares no triângulo Bexiga-República-Consolação.

            A música, ou melhor, os botecos com música ao vivo, exerceu um papel fundamental na aglutinação intelectual do período, que viu surgir ali os grandes Festivais da Record, a dita MPB e a música de protesto. Nunca a música popular, o teatro e o cinema estiveram tão identificados em torno de um projeto político que misturava – de muitas formas, às vezes conflitantes – invenção, nacionalismo, revolução de costumes e luta de classes. Não à toa é também o período em que o campo de esquerda se fragmenta, e o golpe de 1964 vai encontrar apoio numa classe média assustada com as mudanças que aquele bando de transviados e transgressoras da “velha ordem” anunciavam ruidosamente em suas manifestações.

            É também o afloramento de movimentos identitários, do Black Power, da emancipação feminina, da liberdade sexual proporcionada pelo surgimento da pílula anticoncepcional, e da televisão se tornando a maior mídia em escala mundial, para o bem e para o mal.

            Há depoimentos de Plínio Marcos, Maria Adelaide Amaral, Walnice Nogueira Galvão, Marika Gidali, Ugo Giorgetti, Mouzar Benedito, Maria Rita Kehl, Ignacio de Loyola Brandão, Olgária Matos, Roberto Freire, Celso Frateschi, Nair Benedicto, Idibal Pivetta, Rudá de Andrade, Milton Hatoum, Vallandro Keating, Luiz Roncari, João Signorelli, Rita Lee, Dagomir Marquezi e Izaías Almada, entre outros.

            Lúcia Gama costura os entrevistados criando uma personagem que vagueia de bar em bar, encontrando com os depoentes. Todos falam no tempo presente (“eu estou vindo de Minas Gerais para estudar”, “estou procurando trabalho no teatro”), o que cria um efeito curioso. A autora revelou que os textos foram adaptados para criar um efeito de estar em tempo real, procurando manter a fidelidade aos fatos.

            É inevitável algumas repetições, em vários depoimentos. Uma vez que todos se encontravam nos mesmos bares, cantinas, teatros e cinemas, os nomes de lugares, eventos e pessoas retornam à baila. Talvez uma edição rigorosa reduzisse as quase 500 páginas do livro, mas implicaria em perda de autenticidade. É compreensível que se todos fossem ao Teatro de Arena e depois esticassem no Redondo ou fossem ouvir MPB na Galeria Metrópole, nos anos 60, isso apareça em muitos depoimentos.

            No terço final do livro, que aborda o período da ditadura, aprofunda-se a ramificação dos anseios (ou divisionismo, como diria um velho integrante do Partidão). O movimento gay (ainda não havia a sigla LGBT e suas derivações), a Jovem Guarda criando um novo público e novos locais de afluência da juventude paulista (Rua Augusta), as mulheres se destacando em várias áreas e reivindicando mais, o movimento negro estimulado pelo contato televisivo com o mundo (Panteras Negras, Mohammed Ali, Angela Davis), e Guerra do Vietnã, Maio de 68, Flower Power, Woodstock, Tropicália, Che Guevara, Araguaia, censura, cassações, ditadura.

Lucia Gama insere alguns parágrafos de situação histórica, norteando as falas. Fica claro que os vários sentidos possíveis da construção de uma história oral, vivenciada pelos personagens, criam múltiplas camadas de percepção. Em um cenário turbulento, vozes isoladas revelam dilemas existenciais, políticos, sexuais, éticos, estéticos e comportamentais.

Para quem conhece a geografia e a história de São Paulo, o livro permite várias recordações, principalmente se viveu ali no período abarcado. Há teatros e bares que ainda persistem. Mais melancólica é a situação de quem busca as livrarias ou cinemas citados, todos vitimados pela “força da grana que ergue e destrói coisas belas.”

E, para quem não conhece, o livro é uma boa oportunidade de entender como a maior metrópole do país rivalizou com a capital federal nos anos enfocados, tornando-se epicentro de movimentos culturais e sociais que ainda mostram suas marcas, ainda que fragmentadas, no Brasil do século XXI.

Música como fio condutor da(s) História(s)

Conversa puxa conversa, e quando o conversador é bom, rende muito. Este é o caso do surpreendente livro de Edson Natale, “A Música no Brasil que você toca (Ed. Paraquedas, 2023).

Obviamente, é um livro sobre música brasileira. O que é menos óbvio é a maneira com que o autor vai emendando assuntos, e incluindo preciosos tópicos de história, cinema, literatura, artes plásticas, teatro, TV, folclore, política ou geografia, e não só do Brasil.

Fruto de mais de 30 anos de pesquisa e viagens pelo país, o resultado é um volume de 160 páginas repletas de informações reveladoras e curiosas, às vezes inusitadas. Pode começar um capítulo falando do padre Landell de Moura, o inventor brasileiro do rádio, passar pelo movimento musical roraimense e enumerar vários artistas da Amazônia. Ou iniciar relembrando a história da aviação brasileira, passar por Agostinho dos Santos, citar a cantora lírica Maria d’Apparecida e falar de racismo, narrando os entreveros entre Tony Tornado e a ditadura militar.

Títulos provocantes como “Mulher pode tocar trombone” ou “Nenhuma guerra é justa” abrem narrativas concisas que falam de preconceito e machismo. Apresenta as pioneiras Chiquinha Gonzaga e Jovita Alves Pedrosa, passa por Gilda de Barros, Abbie Conant e Inezita Barroso, introduz o ex-combatente da II Guerra Pedro Sorongo, futuro percussionista genial, e homenageia Tenório Jr., pianista brasileiro morto pela ditadura argentina.

Em outra chave, recorda a viagem do poeta surrealista Benjamin Péret ao Brasil, acompanhado pela sua mulher, a brasileira Elsie Houston, cantora e pesquisadora do folclore brasileiro, passa pelo almirante negro João Cândido, resume a vida militante da atriz Lélia Abramo e termina falando da missa em homenagem a Vladimir Herzog, marco da história recente brasileira.

E personagens vivos, contemporâneos, vão entrando na prosa. O compositor Maurício Pereira, o violeiro Paulo Freire, o produtor e técnico Pena Schmidt, o cineasta Fernando Meirelles ou o punk pernambucano Cannibal, sempre entremeados com figuras históricas como João Pacífico, Patativa do Assaré, Luiz Carlos Prestes, Cego Aderaldo, Dilermando Reis, Lampião e Volta Seca, Zaíra de Oliveira, Osvaldo Pugliese, Moacir Santos ou Possidônio Queiroz, o flautista piauiense que fez questão de tocar e fazer  o discurso de recepção para a Coluna Prestes quando ela passou por sua cidade, Oeiras.

A música acaba sendo linha-e-agulha com a qual Natale vai costurando com maestria pedaços de um Brasil multicolorido e contrastante, desigual e injusto em tantos momentos, mas fascinante e criativo em muitos outros. Sem formalismo acadêmico, mas com notas de rodapé quando necessárias, e com as referências bibliográficas devidamente listadas no final, o livro pode ser definido como um belo conjunto de pequenos ensaios, ou crônicas-com-conteúdo (se é que existe essa classificação). O melhor mesmo é não tentar definir, mas mergulhar na leitura prazerosa e enriquecedora.

Apenas a edição merece alguns reparos, como a fonte sem serifa e a impressão pouco contrastada, que dificulta a leitura em ambiente pouco iluminado. Leve o livro para a praia e aproveite!

(publicado originalmente em A Terra É Redonda)

Um clássico contemporâneo

Numa obra já ironicamente clássica, o escritor Ítalo Calvino (1923/1985) se propôs responder à famosa questão “Por que ler os clássicos?”, defendendo a necessidade de conhecer os textos mais marcantes de cada época, com argumentos que vão da pura fruição estética até a necessidade histórica de conhecer os alicerces e baldrames que sustentam o edifício literário da humanidade.  

Sem a elegância do mestre italiano (nascido em Cuba!), arrisco afirmar que um dos autores brasileiros vivos que mais se aproximam do conceito de clássico, no sentido de necessário, é Roniwalter Jatobá. Autor de obra originalíssima, cultor de escrita límpida e precisa que nunca escorrega na vulgaridade, mantém desde as primeiras obras publicadas uma coerência temática e formal que o distingue da grande maioria dos contemporâneos.

Jatobá colocou personagens migrantes e operários como protagonistas, em meados dos anos 70. Seria exagero dizer que foi um pioneiro, mas ninguém foi tão consistente e verossímil até então. Sua escrita é um mergulho existencial e sociológico, traduzida em literatura de primeira qualidade, sem o menor traço de academicismo. Desde Sabor de Química (1976), volume inaugural de contos, passando pelo essencial Crônicas da Vida Operária (1978) até Tiziu (1994), novela que recupera ambientes, situações e personagens de narrativas anteriores, a escrita de Jatobá se refina, se concentra, sem desviar o foco.

O que uma obra como essa pode nos ensinar? Não só o “se queres ser universal, comece a pintar a tua aldeia” de Tolstói, mas o “se queres ser universal, retrate a tua época”. Roniwalter Jatobá conjuga tempo e espaço geográfico com a sabedoria de quem vivenciou e a ousadia de não ser um mero relator, mas um transfigurador que utiliza a linguagem para criar um campo ficcional carregado de verossimilhança e contundência.

O autor também publicou crônicas, outros contos e novelas nos anos 2000, sendo premiado com o Jabuti em 2012 por Cheiro de Chocolate e Outras Histórias.

As obras do ciclo operário (Sabor de Química, Crônicas da Vida Operária e Tiziu) foram reunidas no volume No Chão da Fábrica (Nova Alexandria, 2016). Ler (ou reler) estes textos hoje nos proporciona estabelecer conexões às vezes perturbadoras com as transformações que o mundo do trabalho vem passando, no mundo todo. A precarização crescente e a perda de direitos duramente conquistados se mesclam com a preservação de estruturas autoritárias que vêm de séculos anteriores, criando um terreno pantanoso que poucos autores arriscam palmilhar.

Jatobá o faz com capricho artesanal e concisão narrativa, sem medo de lançar mão de imagens poéticas, ainda que marcadas pela aspereza da realidade, ou de narrar na primeira pessoa buscando tocar de perto o leitor. E essa aproximação ao mesmo tempo choca e fascina, ambiguidade rara que só mestres manejam com perfeição.

(Publicado originalmente em A Terra É Redonda)

Traficantes de sonhos

Vez em quando surge na literatura contemporânea um autor que parece ter surgido do submundo, sem influências ou referências de estilo, e causa impacto pela originalidade, frescor e, quase sempre, contundência temática, permeada por uma certa revolta de classe. Não é um fenômeno brasileiro, algo parecido deve ocorrer em todas as línguas, uma vez que não há nação em que as desigualdades sociais sejam completamente ocultadas.

Lima Barreto, Plínio Marcos, Maria Carolina de Jesus, Ferréz, Paulo Lins e, mais recente, o carioca Geovani Martins, são alguns nomes geralmente citados como paradigmas dessa corrente. Alguns argumentam que até mesmo Machado de Assis poderia ser um exemplo vindo da mesma origem, mas do que falamos aqui é de construir uma obra de voz popular, como porta-voz de seus semelhantes, e não buscando absorver a linguagem e a temática universal dos mestres de sua época. Não basta ter nascido na favela, é preciso transportá-la, traduzi-la em sua escrita.

Obviamente, estamos aqui falando apenas da prosa, sob forma de conto, crônica ou romance. Por vários motivos, a poesia sempre foi um veículo mais versátil para traduzir as angústias nas periferias sociais e culturais de nosso planeta. Até pelo fato de que dispensa papel e gráfica, basta um muro e um pedaço de carvão. Ou a própria voz.

O prosador José Falero é um notável representante dessa linhagem. Nascido na periferia de Porto Alegre, conviveu com a pobreza e a barra pesada do tráfico, da discriminação e da violência policial. Estreou com o volume de contos Vila Sapo, e em 2020 lançou o romance Os Supridores (Ed. Todavia), vencedor de vários prêmios.

A narrativa começa de forma cautelosa, introduzindo os personagens e o cenário central do enredo. Um supermercado, onde trabalham Pedro e Marques, os supridores do título. Mais conhecidos como repositores em outras regiões do Brasil, são aqueles funcionários que arrumam as mercadorias nas prateleiras e cuidam para que estejam sempre abastecidas.

Pedro é apresentado como leitor e sonhador inconformado. Almeja uma vida melhor, como todos, e carrega uma instintiva revolta contra a situação de pobreza. Chega a citar Marx nos diálogos com o amigo, que é casado e acaba de receber a notícia de que a mulher está grávida pela segunda vez. Marques acaba sendo convencido de que o único jeito de saírem da miséria é passarem a vender maconha no bairro, nicho em desuso pela preferência dos traficantes da região por cocaína e crack. Passam, portanto, a serem supridores de outra categoria.

Em linguagem que oscila entre a norma culta e a reprodução da fala cotidiana das periferias, cheia de palavrões e sem muita sutileza, Falero constrói uma trama envolvente, que ganha fluência e contornos de thriller policial na segunda metade da narrativa.

Personagens secundários vão ganhando relevância, como Angélica, a mulher de Marques, o segurança do supermercado, o adolescente Luan, os chefes do tráfico para quem eles pedem autorização para operar, o gerente do supermercado. Delineia-se todo um universo à margem da lei e da ordem, que delimita regras de convívio, que institui uma ética própria de comportamento social. E onde a justiça é feita com as próprias mãos, graças à inércia do Estado.

Falero conduz a narrativa com segurança, e trabalha na medida certa o perfil psicológico dos personagens até o desenlace eletrizante da trama. A repetição de palavrões pode enjoar alguns leitores mais sensíveis, mas o autor sempre terá o álibi de que “na quebrada se fala desse jeito, tá ligado?”

Os Supridores é um romance essencial para compreender a realidade das periferias metropolitanas brasileiras, deste imenso mundo de excluídos que de vez em quando consegue se expressar através de tortuosas vias. Remete ao sonho universal de subir na vida a qualquer preço, e enfoca personagens que acabam pagando um preço alto na gôndola de oportunidades que o supermercado-mundo oferece. E o autor não observa com um binóculo, de longe, como se fosse um acadêmico, mas com uma mirada próxima, na altura dos olhos, com a sabedoria inata de irmão.

(publicado originalmente em A Terra É Redonda)

A vida sem retorno

Albert Camus disse, em sua obra O Mito de Sísifo, que só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Se a vida vale a pena ser vivida é, para o escritor argelino, questão advinda de uma reflexão sobre a falta de controle sobre o destino, sobre as engrenagens sociais que determinam e conformam trajetórias, sobre os grilhões éticos e morais que nos aprisionam.

O romance Doze Dias, de Tiago Feijó (Penalux, 2022), não trata de suicídio, mas em vários momentos traz à tona estas questões. Ao mergulhar no difícil reencontro entre um filho e um pai que não se veem há quinze anos, na UTI de um hospital, o autor nos envolve em um tempo-espaço sem contornos definidos, onde os dias variam de ordem e os fatos pouco a pouco vão revelando nuances sobre os personagens.

O que poderia resultar num drama sombrio e masoquista é contornado com habilidade por Feijó. Ao introduzir um casal de velhos na mesma antessala de UTI, que vai interagir com o pai e filho por alguns dias, ele coloca a possibilidade de vidas felizes, de esperança de cura, descrevendo o fervor simplório de quem acredita em milagres. Um luminoso contraponto ao cinzento horizonte em que se encontram os protagonistas.

Outros personagens saem da penumbra. A mãe, separada há muitos anos do senhor Raul, e que criou o filho Antônio praticamente sozinha (supomos). A meia irmã, que ele mal conhece, a segunda mulher do pai, que faz uma aparição fugaz. As enfermeiras, sempre eficientes e insuficientes. Em alguns momentos a narrativa sai do hospital e acompanha o filho que retorna à casa paterna agora vazia, em Lorena, para regar as plantas a pedido do pai.

O grande personagem de Doze Dias é o narrador. Onisciente, dialoga com o leitor ora descrevendo o estado mental dos protagonistas, ora antecipando ações que só ocorrerão algumas páginas depois. Desnuda com detalhes a vida dissoluta do senhor Raul, revela as inseguranças do filho, não perde tempo em detalhes dos personagens secundários.

Tiago Feijó controla com maestria todos as camadas da narrativa, e entrega um belo romance de 185 páginas onde o leitor vai compartilhar um drama que está presente na vida de milhões de pessoas que sentem na proximidade da morte uma natural compulsão a reavaliar seus laços familiares, suas relações afetivas, e também a sua própria vida. Sem a pretensão de dar lições, mas de fazer boa literatura.

(Publicado originalmente em A Terra É Redonda).

Ler ou escrever?

Uma amiga querida me cobra escrever mais sobre literatura no Facebook. De fato, falo mais de política e de passarinhos, no dia a dia desse lugar de papo rápido e sem muito compromisso. Guardo os textos mais reflexivos sobre literatura para o meu blog, Fósforo, e alguns portais onde opino regularmente, como o A Terra É Redonda.

O fato de ter obras publicadas parece criar na cabeça das pessoas a imagem – um tanto romântica – de um sujeito que vive escrevendo, lendo e refletindo sobre literatura. Um cara dispersivo como eu, se vivesse no século XIX, sem TV, internet, cinema e música radiofônica, passaria as noites nas tabernas e cabarés, e não escrevendo pacientemente à luz de velas como os grandes mestres da época.

Reconheço que há pessoas assim no século XXI. Admiro escritores que produzem mais que galinhas de raça, pondo ovos de forma incessante. Muitos conseguem ser saborosos e nutritivos na maior parte do tempo, mesmo com o parco milho com que a realidade brasileira os remunera.

Na verdade, sou um leitor que às vezes escreve. Borges certa vez comentou que ler é uma atitude mais civilizada que escrever. Podemos escrever com raiva, com ódio, com amor, com loucura. Ler, não. É sempre consciente, requer um preparo do corpo e do espírito para fruir a “rosa profunda” de que falava o mestre argentino.

O garoto que começou a ler com voracidade na infância e atravessou a adolescência descobrindo o mundo através da literatura, continua um garoto. Ou melhor, um leitor. Não dá mais pra ler na cama por uma hora antes de dormir, pois as costelas reclamam. A obrigação de ler noticiários, balanços, contas e discursos acabam diminuindo a quantidade de horas dedicadas ao simples prazer. Mas continuo me esforçando.

Enfim, amiga, estou terminando mais um romance. Um policial bem paulista, cuja trama se inicia no Vale do Ribeira, dentro de uma caverna, passa pelo Bairro da Luz, na capital, e termina… bem, não vou dizer como nem onde termina, embora já tenha o desfecho desenhado na cabeça. Escrevi umas quarenta páginas há uns três anos, esteve parado por dois anos, quase comecei outro sobre um marinheiro que vem com a esquadra de Cabral à Ilha de Vera  Cruz, depois Terra de Santa Cruz, mas resolvi finalizar o inacabado.

Enfim, ler é muito mais satisfatório e gratificante que escrever. Quando termino de ler um livro compensador, sinto-me enriquecido, algo de novo se acrescentou. Quando termino de escrever um conto ou um romance, sinto-me esvaziado. Parece que algo que estava aqui dentro foi embora.

Falta-me o espírito de vendedor, de autopromoção, que invejo em tantos colegas. É com certo esforço envergonhado que mostro os livros que escrevi. Chego a ter contos premiados em concursos, assinados com pseudônimo, e que nunca publiquei…

Enfim, um pouco de terapia talvez funcione.

(ilustração: Lênio Braga)

Benedetti e a Chave de Ouro

Chave de Ouro é uma expressão consagrada, na literatura, para designar o último verso de um soneto, aquele que sintetiza ou conclui com perfeição a ideia desenvolvida no poema. Por extensão, também é aplicada a tudo que se encerra com êxito, de maneira magistral, seja um conto, romance ou poema longo.

Cabe lembrar que as boas fábulas também são fechadas de forma exemplar, desde os tempos de Esopo. A moral, às vezes surpreendente, é sempre guardada para o final. Mesmo nas formas mais prosaicas e vulgares de ficção, como as piadas de salão ou boteco, quanto mais a chave de ouro é bem elaborada, mais aplausos – ou risadas – arranca da plateia.

Os contos e romances policiais se valem muito desta fórmula, pois o mistério só deve ser revelado no final. Provavelmente muitos escritores, fabulistas, poetas e contadores de piada sacam primeiro a potencialidade de uma frase ou imagem, e constroem um enredo que tem seu corolário na tal chave.

No século XX, com a fragmentação e desconstrução dos gêneros e estilos, a chave de ouro foi colocada em cheque. Modelo ultrapassado, para alguns, principalmente os cultores da linguagem mais formalista, experimental, para quem a fruição plena deve perpassar todo o projeto literário, através da linguagem. Há algo de parnasiano nessa visão, de considerar o texto uma espécie de escultura que deve ser apreciado por todos os ângulos, mas é inegável que há obras primas contemporâneas que dispensam a tal chave de ouro, seja em verso ou prosa.

Fiquemos nessa última, com alguns exemplos. Em seus contos, Machado burilava sua chave de ouro com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, como ele mesmo revelou. Já Guimarães Rosa, embora não a descartasse, apostava no encantamento da linguagem, da construção desafiadora e melódica da linguagem.

Por que melódica? Porque, ao contrário da literatura, a música prescinde de uma chave de ouro. Nos maravilhamos com a arquitetura sonora de uma sinfonia ou de um concerto, tenha ou não o tal fechamento dourado. Não é o último acorde que nos comove ou surpreende*, mas o discurso estético, a forma com que se desenvolve. Na música popular, a letra às vezes utiliza o engenhoso recurso, herança literária, mas não é imprescindível para que se torne um sucesso de estima.

Esta pequena reflexão me ocorre ao terminar uma releitura de Montevideanos, coletâneas de contos de Mario Benedetti (1920/2009). O uruguaio, um dos gigantes da literatura latino-americana, mais conhecido no Brasil como poeta e romancista, é um mestre absoluto da narrativa curta. Montevideanos, publicado em 1959, enfoca a pequena classe média de seu país, que se iguala à de todos os países. A mesquinhez, os ódios dissimulados, a rivalidade, a ambição, a ausência de solidariedade, tudo isso é colocado sob o microscópio de Benedetti, que analisa e descreve com humor ferino e visão aguda os seus conterrâneos.

Arguto investigador das grandezas e pequenezas do ser humano, o escritor utiliza a tal chave de ouro com tal maestria que nos deixa maravilhados. Um dos fundadores da modernidade literária do continente, cultor de uma linguagem fluida, límpida, sem floreios desnecessários, descreve uma situação em poucas páginas e resolve de modo exemplar.

Obviamente, não vou reproduzir aqui algumas dessas frases finais, geralmente temperadas de humor e sarcasmo. O risco de revelar o segredo que norteia a narrativa é imenso. O humanista de esquerda, que foi exilado pela ditadura, morou em vários países, e foi capaz de escrever versos como “Si te quiero es porque sos/ Mi amor mi cómplice e todo/ Y em calle, codo a codo/ Somos mucho más que dos” (versos da canção Te Quiero, gravada por vários artistas) uniu como poucos razão e sentimento, revolta e compaixão. Escritor prolífico, mas nunca repetitivo, soube valorizar a herança dos que o antecederam, limando os excessos e nos ofertando um destilado da mais refinada extração. Pero, sin perder la ironía jamás.

*O Bolero de Ravel é, nesse sentido, uma espantosa exceção.

(publicado originalmente em A Terra É Redonda)

João Satie e Erick Donato

O título desse artigo poderia ser “Os poetas da síntese musical”. A proposta é – e qualquer artigo é apenas uma proposta jogada no tabuleiro das ideias, não uma sentença – traçar um paralelo entre duas figuras seminais da música do século XX, cada qual no seu contexto.

Satie é considerado um dos precursores do minimalismo musical. Nascido na Normandia em 1866, mudou-se para Paris em 1878, e entrou no Conservatório de Paris, onde foi considerado medíocre. Pra sobreviver, virou pianista de um cabaré, o  famoso Chat Noir. Flertou com o ragtime, precursor do jazz. Conviveu com grandes nomes do cenário artístico, e sua personalidade original cativou pessoas como Picasso, Debussy (que orquestrou peças suas), Ravel e Cocteau.

Donato, nascido no Acre em 1934, nasceu em família musical, e começou tocando acordeon. Foi com a família para o Rio de Janeiro em 1945, e passou a frequentar o restrito circuito musical alternativo da época, então dominada pelo samba-canção. Flertou com o jazz, sucessor do ragtime, aproximou-se dos músicos e compositores da Bossa Nova, sem nunca aderir totalmente ao estilo. Seu coração amazônico estava mais próximo do Caribe que dos apartamentos de Ipanema, e isso se refletiu em sua produção musical.

Satie teve um grande amor na vida, Suzanne Valadon, uma artista plástica que ficou mais conhecida por ter sido modelo de Degas e Renoir, mestres do impressionismo. Donato teve vários amores, mas nenhum como Leila, a quem dedicou várias composições, chamadas Leilíadas. Nos anos 90, Donato ficou quase 20 anos sem gravar. Satie, voltou a estudar música com quase quarenta anos, depois de ficar 15 anos sem compor. É o que diz a lenda…

O que há em comum nas criações desses homens extraordinários? A extraordinária capacidade de síntese, de decantação de ideias musicais. Com poucas notas e harmonias aparentemente simples, conseguem criar atmosferas absolutamente originais. Um mais melancólico, lunar, outro totalmente solar, porém atentos ao mundo musical cambiante em que viveram. Sem seguir correntes, avessos aos modismos, criaram caminhos onde absorveram e moldaram de forma pessoal as formas musicais que conduziam ao caminho da cristalização de uma ideia: haikais musicais, células melódicas e rítmicas que se tornaram paradigmáticas, e que em poucos compassos explicitam um clima.

Ambos foram considerados malucos.  Conta-se que Satie um dia chamou o amigo Debussy para ouvir um novo acorde que havia descoberto, e Claude tinha de ajuda-lo (ou dissuadi-lo) a empurrar o piano pela janela do segundo andar. O último disco de Donato tem na capa a fotografia dele com o amigo Macalé, pelados.

Ambos deixaram obras inesquecíveis, que reconhecemos ao ouvir as primeiras notas. Enquanto o francês refletiu um clima de melancolia e solidão em suas pequenas esculturas musicais, o brasileiro nasceu para bailar. Tocou com músicos de várias gerações, morou nos EUA, acompanhou cantoras notáveis, escreveu inúmeros móbiles musicais cujo encanto se renova a cada audição.

Que sorte podermos fruir a arte desses malucos adoráveis!

(Publicado originalmente em A Terra É Redonda).


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