Arquivo para setembro \20\-02:00 2023

A vida sem retorno

Albert Camus disse, em sua obra O Mito de Sísifo, que só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Se a vida vale a pena ser vivida é, para o escritor argelino, questão advinda de uma reflexão sobre a falta de controle sobre o destino, sobre as engrenagens sociais que determinam e conformam trajetórias, sobre os grilhões éticos e morais que nos aprisionam.

O romance Doze Dias, de Tiago Feijó (Penalux, 2022), não trata de suicídio, mas em vários momentos traz à tona estas questões. Ao mergulhar no difícil reencontro entre um filho e um pai que não se veem há quinze anos, na UTI de um hospital, o autor nos envolve em um tempo-espaço sem contornos definidos, onde os dias variam de ordem e os fatos pouco a pouco vão revelando nuances sobre os personagens.

O que poderia resultar num drama sombrio e masoquista é contornado com habilidade por Feijó. Ao introduzir um casal de velhos na mesma antessala de UTI, que vai interagir com o pai e filho por alguns dias, ele coloca a possibilidade de vidas felizes, de esperança de cura, descrevendo o fervor simplório de quem acredita em milagres. Um luminoso contraponto ao cinzento horizonte em que se encontram os protagonistas.

Outros personagens saem da penumbra. A mãe, separada há muitos anos do senhor Raul, e que criou o filho Antônio praticamente sozinha (supomos). A meia irmã, que ele mal conhece, a segunda mulher do pai, que faz uma aparição fugaz. As enfermeiras, sempre eficientes e insuficientes. Em alguns momentos a narrativa sai do hospital e acompanha o filho que retorna à casa paterna agora vazia, em Lorena, para regar as plantas a pedido do pai.

O grande personagem de Doze Dias é o narrador. Onisciente, dialoga com o leitor ora descrevendo o estado mental dos protagonistas, ora antecipando ações que só ocorrerão algumas páginas depois. Desnuda com detalhes a vida dissoluta do senhor Raul, revela as inseguranças do filho, não perde tempo em detalhes dos personagens secundários.

Tiago Feijó controla com maestria todos as camadas da narrativa, e entrega um belo romance de 185 páginas onde o leitor vai compartilhar um drama que está presente na vida de milhões de pessoas que sentem na proximidade da morte uma natural compulsão a reavaliar seus laços familiares, suas relações afetivas, e também a sua própria vida. Sem a pretensão de dar lições, mas de fazer boa literatura.

(Publicado originalmente em A Terra É Redonda).

Ler ou escrever?

Uma amiga querida me cobra escrever mais sobre literatura no Facebook. De fato, falo mais de política e de passarinhos, no dia a dia desse lugar de papo rápido e sem muito compromisso. Guardo os textos mais reflexivos sobre literatura para o meu blog, Fósforo, e alguns portais onde opino regularmente, como o A Terra É Redonda.

O fato de ter obras publicadas parece criar na cabeça das pessoas a imagem – um tanto romântica – de um sujeito que vive escrevendo, lendo e refletindo sobre literatura. Um cara dispersivo como eu, se vivesse no século XIX, sem TV, internet, cinema e música radiofônica, passaria as noites nas tabernas e cabarés, e não escrevendo pacientemente à luz de velas como os grandes mestres da época.

Reconheço que há pessoas assim no século XXI. Admiro escritores que produzem mais que galinhas de raça, pondo ovos de forma incessante. Muitos conseguem ser saborosos e nutritivos na maior parte do tempo, mesmo com o parco milho com que a realidade brasileira os remunera.

Na verdade, sou um leitor que às vezes escreve. Borges certa vez comentou que ler é uma atitude mais civilizada que escrever. Podemos escrever com raiva, com ódio, com amor, com loucura. Ler, não. É sempre consciente, requer um preparo do corpo e do espírito para fruir a “rosa profunda” de que falava o mestre argentino.

O garoto que começou a ler com voracidade na infância e atravessou a adolescência descobrindo o mundo através da literatura, continua um garoto. Ou melhor, um leitor. Não dá mais pra ler na cama por uma hora antes de dormir, pois as costelas reclamam. A obrigação de ler noticiários, balanços, contas e discursos acabam diminuindo a quantidade de horas dedicadas ao simples prazer. Mas continuo me esforçando.

Enfim, amiga, estou terminando mais um romance. Um policial bem paulista, cuja trama se inicia no Vale do Ribeira, dentro de uma caverna, passa pelo Bairro da Luz, na capital, e termina… bem, não vou dizer como nem onde termina, embora já tenha o desfecho desenhado na cabeça. Escrevi umas quarenta páginas há uns três anos, esteve parado por dois anos, quase comecei outro sobre um marinheiro que vem com a esquadra de Cabral à Ilha de Vera  Cruz, depois Terra de Santa Cruz, mas resolvi finalizar o inacabado.

Enfim, ler é muito mais satisfatório e gratificante que escrever. Quando termino de ler um livro compensador, sinto-me enriquecido, algo de novo se acrescentou. Quando termino de escrever um conto ou um romance, sinto-me esvaziado. Parece que algo que estava aqui dentro foi embora.

Falta-me o espírito de vendedor, de autopromoção, que invejo em tantos colegas. É com certo esforço envergonhado que mostro os livros que escrevi. Chego a ter contos premiados em concursos, assinados com pseudônimo, e que nunca publiquei…

Enfim, um pouco de terapia talvez funcione.

(ilustração: Lênio Braga)


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