Os surrealistas franceses criaram o conceito de objet trouvé, objeto encontrado, e faziam arte a partir dos detritos da civilização industrial, revolucionando o conceito de escultura. Adeptos da colagem e da assemblage, também deram novos significados a recortes de jornal, fotografias, anúncios, tecidos, bulas de remédio, cabelos, folhas secas e mais uma infinidade de objetos. Arrumados numa tela, ou melhor, num plano, essa estética da acumulação rompeu com os limites da pintura tradicional e redefiniu os caminhos da arte no início do século XX.
É comum nos depararmos com um objeto qualquer e imaginar que aquilo poderia virar outra coisa. Os readymade surrealistas causaram furor, tendo como ícone a “Fonte” de Duchamp. Para muitos, apenas um urinol invertido, para outros, uma invenção fantástica a partir de um objeto industrial. Picasso fez uma cabeça de touro a partir de um guidom e um selim de bicicleta. Crianças do interior espetam palitos num chuchu e aquilo vira um boizinho.
E objetos encontrados em livros? Fotos, cartões postais, bilhetes de ônibus, ingressos de teatro, selos, recados, flores secas, santinhos, calendários… Quem nunca topou com essas coisas fuçando em velhas estantes? Imagine quem trabalha com isso, num sebo. É como se a mão do acaso semeasse grãos que expostos à luz fossem germinar de forma imprevisível.
Pois o sebo-livraria-editora Alpharrabio, polo cultural de Santo André, ao completar 23 anos de intensa atividade, resolveu montar uma exposição destes objetos encontrados em livros. Mais que isso: convidou poetas, prosadores, agitadores culturais, artistas plásticos e midiáticos a interagir criando pequenos textos, em poesia ou prosa, inspirados nos objets trouvés. Devidamente escaneados e colocados na rede, cada imagem podia ter até três intérpretes literários, com um limite de 300 caracteres.
A ideia partiu da dramaturga e professora Adélia Nicolete, especialista em processos colaborativos. Mas como organizar uma exposição dessas? O óbvio seria pregar o objeto na parede e pendurar ao lado os resultados. O pessoal da Alpharrabio nunca se contentou com o óbvio. Ao entrarmos na livraria, vemos uma surpreendente coleção de livrinhos artesanais com uma imagem na capa, dispostos em prateleiras. Ao pegar um deles revelamos o objeto, escondido atrás. E dentro do livro as leituras poéticas, sensoriais, engraçadas, trágicas, irônicas, transcendentais, amargas e sintéticas de 53 autores. Edição única, exemplares únicos, misturando escritores consagrados, emergentes e inéditos.
A execução e montagem da exposição, de Luzia Maninha, são dignas de aplausos. O que dizer de uma exposição onde o público está sempre com um livrinho na mão, lendo e conferindo uma imagem na parede? Literatura viva, dinâmica, provocativa e interativa, motivando e encantando leitores. Os inquietos pioneiros do século passado iriam adorar (nem eles pensaram nisso!).
Difícil ler tudo de uma vez só. É preciso retornar, curtir, filtrar, depurar. Muitas bonitezas, algumas ligeiras, outras profundas. E a festa (sim a inauguração foi uma festa!) teve o brilho extra do lançamento da coletânea do poeta Tarso de Melo, com direito a intervenções estimulantes da anfitriã Dalila Teles Veras, do editor Reynaldo Damasio e do próprio autor.
Quer conhecer algumas obras? É só acessar os links abaixo. Mas recomendo com fervor uma visita à Alpharrabio, para tomar um cafezinho e se deliciar com este encontro poético de épocas, gerações, indivíduos que nunca se conheceram, que motivados por um simples gesto de abandono nas páginas de um livro propiciaram a todos nós uma experiência estética inesquecível.