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Caetano, desafiando o tempo

Muito já se falou sobre Caetano Veloso, este senhor de 79 anos que continua provocando discussões estéticas e políticas no país onde uma “criança sorridente, feia e morta, estende a mão”.

A audição de seu último disco, Meu Coco, lançado em outubro de 2021, uma coleção de canções inéditas, não deixa de surpreender, embora o mais previsível em qualquer disco de Caetano seja a surpresa. Recheado de citações nominais e referências, o disco parece ser um acerto de contas com um Brasil distópico, onde há a necessidade de estar sempre separando os diamantes do cascalho.

Acerto de contas? Infelizmente, essa conta não tem fim. Irônico, ele canta “o menino me ouviu e já comentou/ o vovô tá nervoso”. Como todos nós, que temos alguma preocupação com os destinos deste país.

A questão geracional, familiar e artística, emerge em diversas canções, como na bela Enzo Gabriel (“Sei que a luz é sutil, mas já verás o que é nasceres no Brasil”), embalada pelo acordeon de Mestrinho. O compositor informa que “Enzo Gabriel é o nome mais escolhido para registrar recém-nascidos brasileiros nos anos 2018 e 2019”, ou seja, é uma música para ser ouvida por um público futuro. Tempo, tempo, tempo, tempo.  Aliás, a voz do “homem velho” Caetano continua viçosa. Um fenômeno.

Os arranjos são primorosos, a cargo do parceiro Jacques Morelenbaum e do talentoso Thiago Amud. Caetano consegue vestir suas preocupações culturais e existenciais com belos parangolés. Outros gigantes de sua geração, como Gil e Chico Buarque, ficam cada vez mais nítidos, fáceis de diferenciar no conjunto da obra. Chico é o mestre consagrado das formas musicais que abraçou, sutil nas experimentações, letrista incomparável, criador de personas múltiplas, ligado desde o início ao teatro, à representação dos sentimentos. Gil é místico, panteísta, confessional às vezes, político hábil, relativista (“um copo vazio está cheio de ar”), músico explosivo em sua origem, que vem aplainando há décadas suas inquietações. Hoje é acadêmico, dono de uma obra tão bela quanto desigual.

A obra de Caetano compartilha vários pontos de intersecção com estes gigantes, claro. Mas onde se diferencia é no discurso original e distanciado da política tradicional. Não à toa, coleciona inimigos à direita e à esquerda. Deve ser o letrista que mais usa “eu” nas canções da música popular brasileira. Egocêntrico? Palavra com carga negativa. “Confessional” é mais bonitinho (vide Gil), e carrega o indiscutível mérito da sinceridade.

Como Gil, ostenta o discurso da negritude, embora seja “quase branco” para os padrões da velhaca elite brasileira. Na grande canção Pardo, do novo disco (arranjo de Letieres Leite), multiplica referências culturais: “Nego, teu rosa é mais rosa que o rosa da mais rosa rosa” é Gertrude Stein reinventada logo no primeiro verso. E completa: “Sou pardo e não tardo a sentir-me crescer o pretume”.

Ouvido sempre atento às múltiplas sonoridades que surgem nesse país, Caetano foi esperto ao citar “Maravília Mendonça”, e ao mesmo tempo lúcido em avisar que “sem samba não dá”, na mesma canção. Aqui cita um punhado de estrelinhas do rap, do “sambonejo ou pagobrejo”, mas o refrão é taxativo: sem samba não dá.

Obviamente Caetano não defende a tradição engomada, mumificada do samba. A leitura aqui é mais abrangente, e se refere a todo um patrimônio imaterial representado pelo samba. O artista contempla o cenário, e observa de maneira crítica como se movem as peças da indústria cultural no tabuleiro da música popular brasileira. Antena da raça, antecipa tendências, reflete sobre a inexorabilidade destes movimentos culturais, não tapa os olhos e os ouvidos à perturbadora realidade que nos entra pelos sete buracos da cabeça.

É comum vermos pessoas que adoravam Caetano na juventude hoje serem críticos a ele. Digamos que envelheceram de forma diferente, para dizer o mínimo. É um raciocínio paradoxal ter achado bacana Caetano cantar no Chacrinha em plena ditadura, e achar condenável que ele cante no programa do Luciano Huck. Este não passa de um Chacrinha sem fantasia, um animador de auditório como tantos outros que alimentam a máquina televisiva desde seu surgimento.

É horrível? Claro. Mas porque cantar no programa do Chacrinha, com sua exploração sexista das mulheres, sua grossura, sua simpatia ao regime militar, sua exploração da miséria (“Vocês querem bacalhau?”), seria honroso? A Tropicália, este movimento estético que fazia da contradição a sua lógica, elegeu Chacrinha como um de seus símbolos: tornou-se o “Velho Guerreiro”, como cantou Gil.

E, no entanto, os tropicalistas se tornaram heróis culturais da esquerda. Ou, pelo menos, da esquerda menos dogmática. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”, já apontava Camões, em um de seus mais célebres sonetos. E emenda: “Muda-se o ser, muda a confiança.”

Caetano nunca demonstrou simpatia por Lula. Isso é um pecado imperdoável para os petistas. Mas desconfio que o contrário também é verdadeiro, o que seria um pecado imperdoável para qualquer pessoa que goste de música popular e poesia. Na grande festa popular que foi a reeleição de Lula, em 29 de outubro de 2006, milhares de pessoas festejavam na Avenida Paulista O sucesso de um governo progressista era motivo de festa. Quando o presidente subiu ao gigantesco trio elétrico, o que tocou? Um sucesso de Zezé de Camargo e Luciano, música então preferida de Dona Marisa.

Era esse o prenúncio dos novos tempos? Foi profético o programador da trilha sonora do evento. E desconfio de que, por mais que Caetano seja indulgente com os artistas da música breganeja, diria (se estivesse presente): sem samba não dá. Todos os sambistas que deram apoio a Lula, de Martinho da Vila a Chico Buarque (que não são apenas sambistas, claro), calaram-se perante as escolhas estéticas do novo governo.

Lula, com a sagacidade que lhe é peculiar, convidou Gilberto Gil para o Ministério da Cultura. Tentava-se ali um pacto com os tropicalistas? Com o Partido Verde, então frequentado por Gil? Foi um gesto ousado, e acalmou por certo tempo as discrepâncias. Fizeram um belo governo, tivemos um ministério da Cultura ativo e inovador, os Pontos de Cultura foram seminais.

A postura de Caetano continuou sendo crítica, para o bem e para o mal. Nunca alinhado, é acusado de ter apoiado, na Bahia, o famigerado ACM, coisa que negou em várias entrevistas. Declarou que “ACM é lindo”? Opa, está registrado. Como muita gente, Caetano tem certo fascínio por déspotas esclarecidos, embora alguns apliquem estes adjetivos de modo um tanto impróprio. Sebastianista a seu modo, acredita que um índio descerá de uma estrela. “Virá, que eu vi”. O próprio ACM afirmou nunca ter recebido o voto dele, mas não é uma opinião confiável.

Canções como Haiti ou Podres Poderes são mais reveladoras da percepção do compositor do que entrevistas enviesadas ou meras provocações. Uma letra de canção é pesada, medida, calculada, é para sempre. No novo disco, Caetano brada em “Não vou deixar”:

Apesar de você dizer que acabou
Que o sonho não tem mais cor
Eu grito e repito: Eu não vou!

Mestre da ambiguidade, seu primeiro refrão famoso, entoado em todo o Brasil, foi “Eu vou, por que não?”. E ele sabe disso. Esse “Eu não vou” provoca o ouvinte saudoso dos tempos sem lenço e sem documento, mas a letra deixa claro o novo sentido: “não vou deixar/ você esculachar com a nossa história”. Um recado para os atuais detentores do poder?

Perdem todos os que não prestam atenção nas argúcias, nas minúcias do discurso do artista. É o mesmo Caetano que se prontifica a cantar numa ocupação do MTST, que escreve uma canção dedicada a Marighella (“guerrilheiro urbano que foi preso por Vargas/ Depois por Magalhães/ Por fim, pelos milicos”). Ah, você não prestou atenção, não ouve Caetano desde que ele falou que não gosta do Lula? Você só curte o Caetano dos anos 70? Camarada, sinto dizer, mas você envelheceu… escute o vovô!

(Publicado originalmente em https://aterraeredonda.com.br/)

Sebastião Biano, 100 anos

Biano

Rolava o ano de 1972 quando Gilberto Gil, de volta do exílio de três anos em Londres, lançou o (até hoje) fantástico disco Expresso 2222. Aprimorando a mistura tropicalista de tradição com modernidade, o LP abria com uma faixa instrumental que para muita gente revelava uma sonoridade estranha, meio sertão, meio medieval. A música era creditada a Sebastião Biano e interpretada pela Banda de Pífanos de Caruaru.

O que parecia ser só uma bizarrice folclórica de Gil revelava, na verdade, um tesouro musical fora da mídia, longe de gravadoras, microfones e holofotes. Surgida no interior de Alagoas em 1924, migrando para Pernambuco em 1939, era uma típica banda familiar, formada para animar os bailes, feiras e festas religiosas que animam a dura vida do nordestino no meio da caatinga.

Caetano colocou letra e batizou a música: Pipoca Moderna. “E era nada de nem noite de negro não/ e era nê, de nunca mais…”. Gravada no disco Jóia de 1975, a letra escancara a influência concretista, mesclada à admiração pela matriz popular, vestida por um sofisticado arranjo de cordas de Perna Fróes. Mas quem era o tal Sebastião, afinal?

A família Biano, como muitas outras, faz parte de uma tradição secular de cultura popular, inserida no contexto (expressão dos anos 70!) por esta geração de artistas que revolucionou a música brasileira. Os integrantes, até hoje, são filhos ou sobrinhos dos fundadores. Fizeram shows no Rio de Janeiro e São Paulo nos anos 70, e lançaram o primeiro disco em 1972, pela CBS.

Em 1973 Marcus Pereira patrocinou um disco da Banda, pelo seu histórico selo. Os irmãos Benedito e Sebastião, líderes da banda, já eram acompanhados pelos filhos. As melodias de “Esquenta Muié” e “A Briga do Cachorro com a Onça”, de Sebastião Biano, se tornaram populares. Não no sentido radiofônico, mas nas praças e terreiros de todo o Nordeste, assim como “Marcha de Procissão”, do mano Benedito. Os dois tocavam pifes (pífanos) de bambu, feitos por eles mesmos. A filharada acompanhava na percussão. E rodaram o país, tocando em praças, acompanhando cantoras e cantores, animando festas e bares.

Toda essa história parece reminiscência, mas não é. Benedito já se foi, mas Sebastião Biano está fazendo um século de vida, e na ativa. A banda continua tocando (é mais velha que os Demônios da Garoa e os Rolling Stones, acredite!) e se apresentando por aí. Às vezes o fôlego falta, mas tem o apoio do segundo pife, hoje a cargo de Junior Caboclo. A memória guarda muita coisa, e boa parte está registrada no documentário de Helder Lopes, Pipoca Moderna, lançado em junho nos festejos de São João, em Caruaru. Tocou pra Lampião, em 1927, mudou-se para São Paulo em 1979, ganhou um Grammy Latino com a banda em 2004, foi condecorado com a Ordem do Mérito Cultural pelo presidente Lula em 2006 e lançou seu primeiro disco solo aos 96 anos, pelo Sesc, acompanhado por Eder “O” Rocha (percussão), Renata Amaral (baixo) e Filpo Ribeiro (viola e rabeca).

Seu Tião (desculpe a intimidade!), como é bom comemorar o centenário de um cabra da peste tocador, compositor, vivo e com alguns dentes de chupar cana resistindo no sorriso. A festa foi no dia 23 de junho, mas está rolando até agora!

(Publicado originalmente na Revista Música Brasileira. Foto, Itaú Cultural).


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