Arquivo para novembro \26\-02:00 2012

Música e Religiosidade

(A leitura do livro comentado no post anterior teve desdobramentos. O proselitismo umbandista do autor me fez refletir sobre a insistência do tema no universo da música brasileira. Nada contra os umbandistas, deixo claro, mas contra o proselitismo, a catequização, a  necessidade de impor ao outro a sua fé. Isso vale para mouros, cristãos, judeus, animistas, xintoístas, corintianos, etc.

Aqui está o artigo, publicado na Revista Música Brasileira, que ilustrei com uma aquarela de Lênio Braga.)

                Dizem os estudiosos que a origem da música tem fundo religioso. Nas tribos mais primitivas, a música é utilizada em rituais sagrados, como sagrado era o trabalho, o nascimento, a morte, a colheita e a festa. Caça e pesca não tem cantoria, claro, senão o almoço fugiria…

                Com a evolução (?) da humanidade, a música ganhou espaço nas atividades laicas. Não se sabe quando ocorreu esta passagem, mas sabemos que em muitas comunidades ainda persiste o caráter primordial. Provavelmente a festa foi o primeiro chamariz a estimular os “compositores” a criarem figuras rítmicas e melódicas que não se referissem diretamente aos deuses.

                O amor foi provavelmente o segundo motivo. O grande escritor cubano Alejo Carpentier (1904-1980), que lia partitura e tocava vários instrumentos, colocou a questão da origem da música no romance Os Passos Perdidos, de forma maravilhosa. Mais que a imitação dos pássaros, um instinto vindo do coração faria o enamorado cantarolar nos ouvidos da amada. E vice versa.

                Mas o sagrado está até hoje colado à experiência da fruição musical. A mais imaterial das artes, que desaparece assim que a última nota deixa de soar, tem algo de mágico, e isso foi aproveitado de muitas formas na história da humanidade. A circularidade da música modal fazia (e faz) os fiéis entrarem em transe, após algum tempo. A música tonal enriqueceu as possiblidades. Catedrais foram construídas para tornar a fruição acústica dos cantos gregorianos algo realmente… de outro mundo!

                Vamos dar um salto agora para o século XXI. Após o Renascimento, o Barroco, o Romantismo, e todos os movimentos de autonomia da música em relação à(s) igreja(s), a ligação ainda persiste. E voltando para o universo da música popular brasileira, que é o nosso foco, temos um quadro bem curioso.

                A música laica, safada, livre, ateia, seja lá como chamemos, até hoje divide espaço com a música de fundo religioso. Claro que o foco fundamental colocado por Carpentier ainda é válido. Mais de metade das canções são de amor, ou como dizem os especialistas, seguem a fórmula procuro um amor/amo meu amor/perdi meu amor. O restante dos temas fundamentais da humanidade (vida, morte, fome, guerra, inveja, ganância, alegria, escárnio, etc.) não chegam a preencher 20% da temática das canções.

                No Brasil vivemos um fenômeno curioso. A música religiosa nunca deixou de existir, mas esteve restrita a templos e festejos típicos por muito tempo. O cristianismo dominante no país, principalmente através dos evangélicos, ganhou espaço nas rádios com o gospel. Que não é exatamente um gênero, mas um aproveitamento religioso de diversas formas existentes de música popular para celebrar os valores cristãos.

                A crítica especializada, os amantes da MPB, os intelectuais e os acadêmicos geralmente torcem o nariz para essa vertente. De fato, os melhores (?) do ramo não costumam apresentar novidades formais, apenas executam de forma competente o invólucro sonoro para o seu proselitismo.

                Porém (ah, porém…) a mesma crítica costuma tecer elogios à música de matriz africana, que celebra os deuses do candomblé e da umbanda. Mestres incontestáveis da música brasileira fizeram referência ou construíram parte de sua obra sobre este território sagrado. São tantos que até fica difícil enumerar. Os afro-sambas de Baden Powell e Vinicius, por exemplo, são considerados obras-primas do cancioneiro brasileiro. E muitos artistas pegaram o bonde do culto à africanidade religiosa: alguns verdadeiros criadores, como Caymmi, outros apenas diluidores.

                Agora é que são elas. Por que falar de cristianismo é brega, e falar de candomblé é chique? Ambos não fazem, cada qual à sua maneira, proselitismo religioso? Roberto Carlos cantando Jesus Cristo é melhor ou pior que Clara Nunes cantando um ponto de umbanda? Por que raios (olha eu invocando os deuses…) o pensamento de Rousseau – filósofo do século XVIII que considerava o homem primitivo mais “puro” – contamina até hoje a nossa avaliação musical?

                Acabo de ouvir um CD de talentosos músicos de São Paulo. Gente fina, culta, músicos maravilhosos. Elogiei muito o disco Metá Metá, ano passado. Lançaram agora, depois de brilhantes apresentações individuais e outros projetos estéticos, o Metal Metal. Está disponível para download aqui (http://kikodinucci.com.br/). Ao vivo deve ser inebriante, magnético, arrebatador. Algo a ver com o transe místico das tribos primitivas.

Ouvindo aqui em casa, em silêncio, me provocou esta reflexão. Confesso que me encheu o saco o culto às entidades do candomblé, mesmo moldadas por um instrumental instigante. Por que diabos (olha eu citando deuses malditos…) isso me soa como um gospel com maquiagem afro? As sociedades primitivas africanas estão entre as mais machistas do planeta, promovem a circuncisão feminina, guerreiam e se matam como qualquer europeu ou asiático, apesar de terem armas menos eficientes. Interesso-me pela música deles, não pelos seus valores religiosos!

É muito rico fazer música popular alimentada pela rica polirritmia africana, fundamental na formação da MPB, exaltando a sensualidade, a beleza, o sorriso, a dor, a perda, o desejo, todos os sentimentos humanos. O samba fez isso, muitas vezes. Mas quando isso começa a virar religião, o risco do botequim virar igreja (ou terreiro) é sério. Deus me livre!

Quando o Samba Não Dá Samba

Minha dúzia de leitores fiéis deve saber que escrevo sobre música com certa frequência. São mais de 200 artigos publicados na Revista Música Brasileira nos últimos anos. Como não é um trabalho remunerado, me divirto comentando os discos que me agradaram, os artistas que me interessam, os shows que me emocionam. Não costumo perder tempo falando de um disco do qual não gostei.

Eventualmente, falo de um filme, de um programa de TV, de um livro. Desde que guarde relação com o tema da RMB, claro. E por isso encarei o romance Desde Que o Samba é Samba, do Paulo Lins.

O cara é o autor do aclamado Cidade de Deus. Não li, mas o impacto midiático da obra fala por si. O filme baseado no romance amplificou – para o bem e para o mal – a originalidade de um relato sobre uma periferia até então escondida do grande público, que ligava violência ao morro de forma automática. Cidade de Deus não é o morro, é pior. Dali não se avista o mar…

                Paulo Lins demorou quinze anos para escrever outro romance. Partiu para a pesquisa histórica, e resolveu falar sobre a década de 1920, quando surgiu a primeira escola de samba. Boa ideia, sem dúvida. Infelizmente, mal realizada. Além de confundir a história, faz uma mistura mal ajambrada de sexo, vadiagem e proselitismo religioso de terreiro. Algo como um Jorge Amado deslocado e desafinado.

                O cara inventa uns maneirismos sem sentido. Durante todo o romance, fala de Alfredo, João e Barbosa, superados representantes da velha guarda, cultores do maxixe e do choro. Os inventores do novo samba são Silva, Alves, Miranda, Bide e Lacerda, entre outros, que acabam criando a primeira escola de samba, a Deixa Falar. O culto Manuel leva Mário para conhecer a invenção.

                Reconheceu algum nome? A brincadeirinha besta – que não é explicada em nenhum momento – é que os “velhos” são Pixinguinha, João da Baiana e Sinhô. Que, aliás, não eram exatamente velhos na década de 20… Os “revolucionários” são Ismael (o tal Silva, que não tem o prenome citado uma única vez), Francisco Alves, Carmen Miranda, Benedito Lacerda… Bide é o único reconhecível pelo apelido.

                Faça-me o favor! Em que época, em que tempo, em que situação, alguém se referiu a Carmen como “Miranda”? E o Rei da Voz era “Alves” aonde? Soa falso, artificial. Manuel era mais conhecido como Bandeira que como Manuel, certamente. Mário é o de Andrade, mas Lins (ha ha ha, me vinguei!)  não declina em nenhum momento o sobrenome. Mas lá pelas tantas, quando surge em cena Prudente de Moraes Neto, o nome completo é pomposamente anunciado, mais de uma vez. Por que não só “Prudente”, para manter a coerência?

                Para piorar, Noel Rosa é citado apenas uma vez, de passagem. Como se ele não fosse um dos responsáveis pela reinvenção do samba naquela década! E não me venham falar que um romance é obra de ficção sem compromisso com a realidade, porque o cara coloca até ficha bibliográfica no final do livro, como se isso avalizasse o resultado. “Veja como eu pesquisei!”

                Enfim, detestei. E não só por isso, mas pela trama frouxa, mal costurada, chula em vários momentos. E essa história de proselitismo religioso quase me fez abandonar o livro nas primeiras 30 páginas. Ando injuriado com isso, até escrevi uma provocação na Revista Música Brasileira, espie!

Não é fácil falar mal de um romance brasileiro. Mas falar bem, nesse caso, seria pior.

Penne à Brandenburgo

 

Já pensou em criar um prato? Uma receita? Parece coisa de aficionados por gastronomia, mas muitas vezes acontece em nossa vida de faminto. O famoso soborô, prato de duvidosa origem oriental, nada mais é do que o famoso ato de chegar em casa com fome, abrir a geladeira, e ver o que sobrou (soborô, em tradução escrava da pronúncia) da feira da semana passada.

Nesta sexta-feira eu até estava tranquilo. Tinha almoçado bem, num evento no Hotel Transamérica, onde provei o melhor pudim de leite de São Paulo (sei que tá rolando um concurso do Estadão sobre isso, fica aqui a dica. Uma amiga minha levitou por uns cinco minutos depois de provar uma colherada…). Enfim, cheguei em casa sem fome.

A Carmen chegou da USP em outro estado, depois da chuva e do anoitecer. Jogou-se no sofá e disse que só tinha comido um sanduíche o dia todo e ia pedir uma pizza. Abro um parêntesis para dizer – contra tudo e contra todos – que acho pizza e jantar coisas diferentes. Pizza é uma categoria à parte, algo entre petisco e aperitivo, próprio para acompanhar cerveja. Não é e nunca será um jantar. Fecha parêntesis.

Gentil, me dispus a preparar algo. Achei que ela iria insistir na pizza mas me lasquei, topou na hora. Abri a geladeira e conferi o saldo da semana. Um alho-porró, dois tomates italianos quase vencidos, duas cenouras, três beterrabas, alfaces amarrotadas, três alcachofras, meia caixinha de tomatinhos-cereja. Nada muito animador. Alcachofra é legal, mas não para matar fome.

Parti para o óbvio, uma massinha rápida. Felizmente em casa sempre tem uma caixa (ou pacote) de macarrão. “Um penne de trigo integral aberto, pela metade, é com esse que eu vou!” Um pouco de azeite na panela, uma colher de alho picado. Refoguei o alho-porró e os tomates fatiados, com um pouquinho de sal, enquanto fervia a água para o macarrão. Num impulso, joguei os tomates-cereja inteiros na frigideira, pra ver o que rolava.

Felizmente minha hortinha no quintal tem manjericão fresco o ano todo. Cortei um belo galhinho e separei as folhas. Ia colocar também orégano, que está verdejante, mas achei melhor não provocar uma briga de aromas. Ou é um ou é outro!

Em trinta minutos (quinze só para esperar a água do macarrão ferver), estava pronto. Antes de retirar o molho da panela, joguei umas azeitonas pretas fatiadas no molho para esquentar por um minuto. Penne ao alho-porró com tomatinhos cozidos, que ficaram quase desmanchados por dentro, mas inteiros. Uma sensação diferente, cada mordida é uma mistura do sal externo com o adocicado natural do interior.

Fiz tudo isso ouvindo Bach, no rádio. Após os elogios da patroa, batizei o prato: Penne à Brandenburgo. Repetirei, mas na próxima vez vou colocar umas mozarelas de búfala para dar um charme. Duro vai ser inventar outro nome…

Obama, mais quatro anos

Muito rico o simbolismo desta foto. Mais que a vitória de Obama, o fato de bater um recorde de compartilhamentos no Twitter (que eu não uso) é inspirador. Não representa um sujeito em cima de um palanque, discursando ou fazendo o V da vitória. O cara soube expor o lado humano, sensível, ao mesmo tempo em que valoriza a presença da mulher em sua vida. E que mulher, convenhamos! Já tem gente até pensando em Michele para a próxima campanha presidencial…

Uma árvore de domingo

Este ipê-rosa, no campus da USP, está um abuso de beleza!

Apesar de tudo, ninguém pode deter a chegada da primavera…


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