Arquivo para maio \27\-02:00 2018

Ai, Ioiô!

Araci Cortes

As primeiras palavras de Meiga Flor, também conhecida como Linda Flor, ou Iaiá, acabaram se tornando nome definitivo da bela canção composta por Henrique Vogeler, em 1928. Mas por que tantos nomes para uma composição? A história é longa e saborosa, e como se trata do primeiro samba-canção lançado em disco no Brasil, merece ser relembrada.

Findava a década de 20, e o teatro de revista era o grande balão de ensaio das canções que depois ganhavam as ruas e as ainda incipientes ondas do rádio. Vogeler, pianista experiente, acabara de compor a dengosa melodia, e Dulce de Almeida a queria para a peça A Verdade Ao Meio Dia, uma comédia argentina de J.G.Traversa (La Hija de Papá, na versão original).

O teatrólogo Candido Costa logo tratou de colocar os versos, ao estilo da época, recheada de beletrismos:

Linda flor

tu não sabes, talvez,

Quanto é puro o amor

Que me inspiras, não crês.

Nem, sobre mim eu olhar,

veio um dia pousar!…

E aindas aumenta a minha dor

Com cruel desdém!

Teu amor

Tu por fim me darás

E o grande fervor

Com que te amo verás

Sim, teu escravo serei

E a teus pés cairei

Ao te ver, minha, enfim (…)

Mesmo com o fracasso da peça, a canção Linda Flor foi lançada por nada menos que Vicente Celestino, que derramou seu estilo épico sobre o disco que, pela primeira vez, trouxe no selo a classificação de “samba-canção-brasileiro”, em 1928. Para os historiadores tornou-se um marco, mas para Vogeler foi um desastre, que ele tentou consertar arrumando um novo letrista. Afinal, aquele negócio de “teu escravo serei/ e a teus pés cairei” não era o que ele ouvia nas ruas da Lapa, por mais bêbado que estivesse um infeliz apaixonado.

Outro homem de teatro foi convocado, Freire Junior, mas as alterações foram poucas. Linda Flor virou Meiga Flor, e Francisco Alves regravou, em 1929.

Meiga Flor,

Não te lembras, talvez,

Das promessas de amor, .

Que te fiz, já não crês (…)

Chico Alves crescia na preferência popular e caminhava para a consagração, mas isso não foi suficiente para o compositor. A nova letra ainda o incomodava. É então que topa com Luís Peixoto, teatrólogo, letrista e parceiro de vários bambas da MPB. Peixoto já vinha burilando uma linguagem popular, mais próxima do vocabulário cotidiano. O (futuro) autor de Na Batucada da Vida (com Ary Barroso), não negou fogo. Muda radicalmente a letra, coloca palavras usadas coloquialmente e condenadas pelos acadêmicos e, principalmente, altera o gênero do emissor da mensagem. É uma mulher, Iaiá, falando de seu Ioiô. Coube a Araci Cortes (na foto), que no ano anterior tinha lançado o maxixe Jura, de Sinhô, imortalizar a letra definitiva na revista Miss Brasil:

Ai, Ioiô,

Eu nasci pra sofrer

Fui oiá pra você,

Meus oinho fechô

E quando os óio eu abri

Quis gritá, quis fugi

Mas você…

Eu não sei porque

Você me chamô

Ai, ioiô,

Tenha pena de mim,

Meu Sinhô do Bonfim

Pode inté se zangá

Se ele um dia soubé

Que você é que é

o ioô de iaiá!

Chorei toda noite, pensei

Nos beijos de amor que te dei

Ioiô, meu benzinho, do meu coração

Me leva pra casa, me deixa mais não!

Os barbarismos podem ter escandalizado os mais conservadores, mas a melodia finalmente encontrou sua melhor tradução verbal. Os ecos da escravidão ainda eram bem presentes, e o lamento de uma escrava (“eu nasci pra sofrer”) apaixonada pelo senhor (Ioiô) era uma leitura possível, e ousada. Mas também podia ser apenas simbólico, uma tradução em linguagem popular do “teu escravo serei” da primeira versão. Em acurada análise, Luiz Tatit aponta no livro O Século da Canção (Ateliê Editorial, 2004) que se “Meu Sinhô do Bonfim/ pode inté se zangar/ se ele um dia souber/ Que você é que é/ O ioiô de iaiá”, alguma subversão da ordem existe aí embutida. Por que o Senhor iria se zangar de um amor puro e sincero nos idos de 29?

Tatit elogia o “casamento perfeito” entre letra e melodia, e a coloca como marco inaugural da era de ouro do rádio, que se inicia na década de 30. Um historiador minucioso como José Ramos Tinhorão alicerça a tese, ancorado em documentos e entrevistas (Pequena História da Música Popular, Vozes, 1975) .

Vale lembrar que uma obra inovadora como Porgy and Bess, de Gershwin, que também rompia preconceitos linguísticos reproduzindo a fala popular dos negros norte-americanos, só foi lançada em 1935, quando Ai, Ioiô já era cantada em todo o Brasil.

Henrique Vogeler tornou-se diretor artístico das gravadoras Brunswick e Odeon. Como pianista, gravou registros históricos de Ernesto Nazareth. Mais tarde, foi assistente de Villa-Lobos. Peixoto continuou dedicado ao teatro com grande sucesso, mas sempre ligado à música. A parceria com Ary Barroso rendeu sucessos na voz de Carmen Miranda e Silvio Caldas, entre outros. É Luxo Só se consagrou na voz de Elizeth Cardoso.

Eram as pessoas certas, no momento certo, sintonizadas com a mudança de uma época. O resultado é definitivo. Os Ioiôs arrasaram. E Iaiá Araci, só por esta, já estaria na História!

(publicado originalmente na Revista Música Brasileira).

Um romance felliniano

Criado-Mudo

Espiando um sebo de calçada em São Paulo deparo-me com um livro quase mítico, do qual ouvi falar no remoto final do século XX. Folheio o volume em estado de novo, leio a orelha repleta de elogios internacionais, e decido levá-lo para casa.

Trata-se do primeiro romance de Egard Telles Ribeiro, O Criado-Mudo, publicado em 1991, pela finada Brasiliense, e posteriormente pela 34 e pela Record, além de edições em inglês, alemão, espanhol e holandês, o que explica os tais elogios.

Já havia comentado aqui no Fósforo outro livro dele, O Punho e a Renda, leitura fundamental para entender como eram os bastidores do Itamaraty durante a ditadura militar. Mas confesso que este livro de estreia, elogiado por gente como Antonio Candido e Antonio Houaiss, me causou um impacto ainda maior.

A trama mirabolante é desenvolvida com tal elegância que custamos a acreditar que se tratava de um autor estreante. Telles Ribeiro foi diplomata, jornalista e professor de cinema, e seu conhecimento profundo dos níveis de linguagem permite com que desenvolva uma narrativa com citações eruditas sem nunca parecer pedante.

A história de Guilhermina, uma jovem interiorana que é entregue pelos pais a um rico fazendeiro num casamento de conveniência, é rememorada pela sua sobrinha-neta e um cineasta frustrado, que enxerga ali um bom plot. Após o fim do tal casamento, as peripécias se desenrolam na Europa, entre castelos, cabarés e restaurantes finos. Num clima felliniano, entram em cena um assassinato, um médico sherlockiano, um balonista, uma cafetina e quatro anãs strippers vestidas de verde, além de dezenas de coadjuvantes da nobreza europeia.

Telles Ribeiro conseguiu o feito de escrever um romance absolutamente original, diferente de tudo que havia antes na literatura brasileira, sem apelar para vanguardices descontrutivas, fluxos de consciência delirantes ou desabafos em primeira pessoa. A lição machadiana está presente, renovada e construída com capricho de artesão dedicado. A ironia refinada, a observação arguta, a citação coerente, a sabedoria de não cair no lugar comum.

Passados quase trinta anos do lançamento, O Criado-Mudo continua brilhando. Que mais se pode esperar de um grande livro?


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