Arquivo para outubro \03\-02:00 2023

Traficantes de sonhos

Vez em quando surge na literatura contemporânea um autor que parece ter surgido do submundo, sem influências ou referências de estilo, e causa impacto pela originalidade, frescor e, quase sempre, contundência temática, permeada por uma certa revolta de classe. Não é um fenômeno brasileiro, algo parecido deve ocorrer em todas as línguas, uma vez que não há nação em que as desigualdades sociais sejam completamente ocultadas.

Lima Barreto, Plínio Marcos, Maria Carolina de Jesus, Ferréz, Paulo Lins e, mais recente, o carioca Geovani Martins, são alguns nomes geralmente citados como paradigmas dessa corrente. Alguns argumentam que até mesmo Machado de Assis poderia ser um exemplo vindo da mesma origem, mas do que falamos aqui é de construir uma obra de voz popular, como porta-voz de seus semelhantes, e não buscando absorver a linguagem e a temática universal dos mestres de sua época. Não basta ter nascido na favela, é preciso transportá-la, traduzi-la em sua escrita.

Obviamente, estamos aqui falando apenas da prosa, sob forma de conto, crônica ou romance. Por vários motivos, a poesia sempre foi um veículo mais versátil para traduzir as angústias nas periferias sociais e culturais de nosso planeta. Até pelo fato de que dispensa papel e gráfica, basta um muro e um pedaço de carvão. Ou a própria voz.

O prosador José Falero é um notável representante dessa linhagem. Nascido na periferia de Porto Alegre, conviveu com a pobreza e a barra pesada do tráfico, da discriminação e da violência policial. Estreou com o volume de contos Vila Sapo, e em 2020 lançou o romance Os Supridores (Ed. Todavia), vencedor de vários prêmios.

A narrativa começa de forma cautelosa, introduzindo os personagens e o cenário central do enredo. Um supermercado, onde trabalham Pedro e Marques, os supridores do título. Mais conhecidos como repositores em outras regiões do Brasil, são aqueles funcionários que arrumam as mercadorias nas prateleiras e cuidam para que estejam sempre abastecidas.

Pedro é apresentado como leitor e sonhador inconformado. Almeja uma vida melhor, como todos, e carrega uma instintiva revolta contra a situação de pobreza. Chega a citar Marx nos diálogos com o amigo, que é casado e acaba de receber a notícia de que a mulher está grávida pela segunda vez. Marques acaba sendo convencido de que o único jeito de saírem da miséria é passarem a vender maconha no bairro, nicho em desuso pela preferência dos traficantes da região por cocaína e crack. Passam, portanto, a serem supridores de outra categoria.

Em linguagem que oscila entre a norma culta e a reprodução da fala cotidiana das periferias, cheia de palavrões e sem muita sutileza, Falero constrói uma trama envolvente, que ganha fluência e contornos de thriller policial na segunda metade da narrativa.

Personagens secundários vão ganhando relevância, como Angélica, a mulher de Marques, o segurança do supermercado, o adolescente Luan, os chefes do tráfico para quem eles pedem autorização para operar, o gerente do supermercado. Delineia-se todo um universo à margem da lei e da ordem, que delimita regras de convívio, que institui uma ética própria de comportamento social. E onde a justiça é feita com as próprias mãos, graças à inércia do Estado.

Falero conduz a narrativa com segurança, e trabalha na medida certa o perfil psicológico dos personagens até o desenlace eletrizante da trama. A repetição de palavrões pode enjoar alguns leitores mais sensíveis, mas o autor sempre terá o álibi de que “na quebrada se fala desse jeito, tá ligado?”

Os Supridores é um romance essencial para compreender a realidade das periferias metropolitanas brasileiras, deste imenso mundo de excluídos que de vez em quando consegue se expressar através de tortuosas vias. Remete ao sonho universal de subir na vida a qualquer preço, e enfoca personagens que acabam pagando um preço alto na gôndola de oportunidades que o supermercado-mundo oferece. E o autor não observa com um binóculo, de longe, como se fosse um acadêmico, mas com uma mirada próxima, na altura dos olhos, com a sabedoria inata de irmão.

(publicado originalmente em A Terra É Redonda)


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