Arquivo para outubro \30\-02:00 2020

O retratista

O fotógrafo retrata um retratista, que retrata dois jovens irmãos. A princípio, uma cena banal, apenas curiosa, das ruas de Montmartre. Ou de qualquer lugar turístico do mundo. Mas, revendo a imagem alguns anos depois, uma curiosa rede de relações e significados se estabelece em minha mente. A menina olha, altiva, para o desenhista. O retrato da menina, esboçado pelo retratista, olha para o fotógrafo, ou seja, eu. Ou seja, nós.Uma ilusão especular, que propõe uma triangulação interessante de olhares. Tridimensional seria um adjetivo adequado, se não fosse tão sequestrado pela indústria digital foto-cinematográfica para um uso unidimensional. A menina hoje é uma mulher, e talvez gostasse de ver essa foto. O menino está entediado, quer acabar logo com aquela chatice. Eles não sabem que passaram a fazer parte do meu repertório de lembranças. É verão, nota-se pelo vestuário. No alto, à esquerda, dois pés calçados de tênis poluem a foto. Mas podem ser vistos, por uma perspectiva de composição renascentista, como a ocupação de um espaço vazio. A foto amadora, feita com uma câmera compacta, ficaria melhor se aparecessem apenas os paralelepípedos? Não há referência de horizonte, mas um poste no alto à direita está obviamente fora da vertical. Isso é compensado pela forte linha do braço, da perna e da prancheta do desenhista, que puxa tudo para o lado oposto, compensando até a postura dos retratados.A menina tem os cabelos soltos. O homem prende, por contingência profissional. Não dá pra desenhar com o cabelo caindo na cara. A camisa escura, talvez preta, dos retratados, contrasta fortemente com a brancura do papel e da camiseta regata do retratista, e dão certa graça à imagem. A calça escura que ele veste, novamente, reequilibra as tonalidades.Objetos estranhos provocam ruído nas bordas da imagem, e acentuam sua amadora imperfeição. E um elemento misterioso, à direita da prancheta, quase no centro da foto, atiça a curiosidade. Demorei anos pra notar aquilo. Você percebeu?

(Foto:Daniel Brazil. Paris, 2009)

Zuza, o homem e seu tempo

Este ano tão cruel levou embora no dia 4 de outubro uma das pessoas mais queridas do meio musical brasileiro: o produtor musical, engenheiro de som, crítico, organizador de festivais, historiador e jornalista Zuza Homem de Melo.

Sua biografia resumida está disponível na internet:  jovem interessado em música, que começou a tocar contrabaixo nos anos 50, viajou para os Estados Unidos, estudou e passou a escrever artigos sobre jazz e música popular. A partir de 1959 trabalha na TV Record, e torna-se figura central da organização do que ele chamou mais tarde, em um de seus livros mais conhecidos, de A Era dos Festivais (Editora 34, 2003). Nas décadas seguintes, foi curador de festivais de jazz e MPB, produziu discos e shows, apresentou programas de TV (Jazz Brasil, na TV Cultura), teve programas de rádio, escreveu livros essenciais para conhecer a música popular de nosso tempo.

Fugindo da frieza acadêmica, do mero alinhamento de fatos e nomes, Zuza não tinha vergonha de se colocar como testemunha ocular (e auditiva) dos fatos que narrava. Aliás, fazia isso com a elegância discreta que sempre caracterizou sua atuação nos bastidores. Estimulando novos valores, orientando artistas consagrados, procurando abrir espaços de renovação da música, sem perder em nenhum momento a noção da importância histórica, cultural e artística dos fatos que relatava.

Deixou tantas obras essenciais que fica difícil escolher a mais representativa. A Canção no Tempo (co-autoria com Jairo Severiano), Eis Aqui os Bossa Nova, Música com Z (coletânea de artigos), Música Popular Brasileira Cantada e Contada.

Antes de morrer, aos 87 anos, acabara de colocar o ponto final em sua biografia de João Gilberto. Seu último livro publicado foi Copacabana – a trajetória do samba-canção (1929-1958), coedição da Editora 34 com o Sesc, de 2017. É sobre ele que vamos nos deter um pouco mais, atentos à lição do mestre.

A obra começa com uma saborosa contextualização do Rio de Janeiro dos anos 50, sob a ótica de um “paulistano no Rio” (título do primeiro capítulo). Zuza fala da chegada à Capital Federal, da dissonância entre zona Norte e zona Sul, do túnel do Leme, do ambiente social da época, da moda, dos cinemas, das boates, dos hormônios em ebulição. Descrito o cenário e dado o clima, descreve a passagem do samba dos teatros de revista do Centro para as boates chiques de Copacabana, tornando-se mais intimista e amaciando o batuque, absorvendo influências norte-americanas (foxtrote) e latinas (bolero).

À medida em que descreve o processo, Zuza interpola os protagonistas da história: compositores e intérpretes que construíram a textura sonora do gênero. Com farta iconografia, que abrange retratos, capas de discos, registro de shows e festas, programas, jornais, partituras e até cardápios, somos envolvidos e até convidados a cantarolar as canções que são citadas.

Em mais de 500 páginas, Zuza Homem de Mello consegue o admirável feito de dosar com sabedoria as suas preferências pessoais, sem escondê-las, e municiar o leitor de todas as informações necessárias para compreender o sentido da expressão samba-canção.  De Ary Barroso a Chico Buarque, de Lupicínio a Cartola, de Aracy Cortes a Maysa,  passando por Noel, Adelino Moreira, Nelson Gonçalves, Braguinha, Dick Farney, Cauby Peixoto, Ângela Maria, Dorival Caymmi, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Tom Jobim, Dalva de Oliveira, Herivelto e tantos outros, a vontade é de parar a leitura a cada página para ouvir as canções citadas. E Zuza generosamente compila as gravações citadas, em apêndice precioso no final do livro.

O autor confessa, no prefácio, ter demorado quase 13 anos para escrever o livro. Outros trabalhos surgiram, livros foram encomendados e publicados, shows foram produzidos. Mas para ele, “o que se criou nos anos 1950 foi determinante para dar ao Brasil o reconhecimento de sua canção como destacada forma de arte na gênese da música popular. Ao primeiro sinal de seu toque rítmico e melódico, o pensamento voa evocando a saudade da terra, reconhecendo o talento musical e distinguindo o afeto do brasileiro comum.”

Do samba-canção surge a bossa-nova, e nos anos 60 tudo se precipita, se mistura e se reconfigura, sem perder a herança genética. E Zuza Homem de Mello, sempre atento aos novos sinais que surgiam em plena era dos festivais, nunca deixou de apontar a importância dos gêneros matriciais da moderna música popular brasileira. Com entusiasmo de garoto e sabedoria de quem viveu intensamente, tornou-se um dos autores fundamentais para entender e amar o que de melhor a cultura brasileira produziu: a nossa música.

(Publicado originalmente na http://www.revistamusicabrasileira.com.br)

A Redescoberta de Noel Nutels

“Os índios vem tentando pacificar os civilizados há 500 anos. Até hoje não conseguiu.”

Uma das mais emblemáticas figuras da luta em defesa dos indígenas brasileiros é, sem dúvida, Noel Nutels. O “Índio cor-de-rosa”, como bem o definiu o escritor Orígenes Lessa, foi uma personalidade fascinante, um judeu emigrado da Ucrânia que veio menino para Recife, onde cresceu e formou-se em Medicina. 

Nutels faz parte de um seleto grupo de “médicos intérpretes do Brasil” (1), profissionais que mergulharam profundamente nos problemas nacionais buscando soluções que envolvessem toda a sociedade, indo a campo, enfrentando governantes e ditadores, criando novos métodos e abordagens, propondo uma visão humanista das questões de saúde. Ombreia-se com gente do calibre de Nísia da Silveira, Carlos Chagas, Vital Brazil, Oswaldo Cruz e Sérgio Arouca, entre outros.

Em 1943 Nutels integrou a primeira expedição Roncador-Xingu, como médico oficial, e esta missão mudou para sempre a sua vida. Companheiro de jornadas dos irmãos Villas-Boas, passou a defender os povos indígenas em todas as instâncias, enquanto organizava ações para a erradicação de doenças levadas pela “civilização” e, principalmente, da tuberculose. Em 1951 tornou-se médico do SPI, Serviço de Proteção ao Índio (entidade que antecedeu a Funai), que chegou a dirigir entre 63 e 64.  Em 1957 criou no ministério da Saúde o Susa, Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas, que atuava na região amazônica.

Mais que uma vida onde combateu o bom combate, a personalidade fascinante de Nutels ganhou a admiração de intelectuais, artistas e políticos. Além do romance biográfico de Origenes Lessa (2), o sanitarista também motivou a inspiração do escritor gaúcho Moacyr Scliar, médico, humanista e judeu como ele. (3)

Nem conseguimos imaginar o que Noel Nutels estaria pensando se vivesse no Brasil de 2020. A única certeza é que não se conformaria com a política genocida do governo neo-militar, e iria à luta. São de atualidade impressionante as suas palavras em depoimento à CPI do Índio, em 1968 – plena ditadura – na Câmara dos Deputados: “A essa hora alguém está matando um índio. É a cobiça da terra, é a cobiça do subsolo, é a cobiça das riquezas naturais. É um vício de estrutura econômica. Enquanto terra for mercadoria e objeto de especulação vai se matar índio. A quem interessa o crime?”.

Mas a batalha pela causa indigenista e pela memória dos verdadeiros heróis desse país ganha esta semana uma importante contribuição. Estreia no festival Olhar de Cinema o documentário O Índio Cor de Rosa contra a Fera invisível: a Peleja de Noel Nutels (4).Fruto de um edital da Fiocruz de 2018, os jovens realizadores souberam aproveitar com inteligência as dezenas de horas filmadas pelo próprio Nutels durante seu trabalho de campo. A linha condutora é o próprio depoimento à CPI de Brasília, único registro conhecido da própria voz do protagonista.

O filme chega às nossas telas embalado por sucesso internacional. Três prêmios no Festival de Biarritz, incluindo o de escolha do público, e Melhor Documentário Iberoamericano no Festival Internacional de Cinema de Buenos Aires. Produzido pela Banda Filmes e dirigido por Tiago Carvalho, o filme tem as primeiras exibições marcadas para os dias 9 e 13 de outubro, no portal do festival (https://olhardecinema.com.br/), o Festival Internacional de Cinema de Curitiba.

O bom Nutels, cineasta amador e documentarista dono de linguagem e ritmo próprios, demonstra nas imagens que deixou um olhar atento e respeitoso sobre as comunidades indígenas. Bonachão, muitas vezes deixou-se fotografar só de calção no meio dos índios, sempre com seu inseparável cachimbo. Que este documentário motive os jovens a conhecer melhor a questão indígena, os problemas de saúde que afetam os mais vulneráveis, e reverenciar os que lutaram a vida inteira para melhorar o mundo em que viveram. E, principalmente, que provoque a indignação pública contra os descalabros dos atuais detentores do poder, aliados à sanha centenária de fazendeiros e mineradores.

(1) Médicos intérpretes do Brasil (Hucitec, 2015). Coletânea organizada por Gilberto Hochman e Nísia Trindade de Lima.

(2) O Índio Cor de Rosa – Evocação de Noel Nutels (Codecri, 1980)

(3) A Majestade do Xingu (Cia. Das Letras, 2009)

(4) Trailer: https://www.youtube.com/watch?v=1CuXCzCTYMw&ab


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