Arquivo para junho \27\-02:00 2017

Intermitências poéticas

Intermitências

              De vez em quando bate a vontade de ler alguma poesia. Não é algo planejado, nem depende de um estado de espírito especial. Em matéria de poesia, sou um leitor bissexto (perdão, Manuel Bandeira!).

            Agrada-me o fato da poesia ser um inutensílio, como diz o outro Manoel, o de Barros, pois me desobriga de regras, métodos ou exercícios de catalogação. Abro um livro e leio alguns versos como alguém que para em meio à caminhada e contempla folhas secas espanadas pelo vento. Às vezes me agrada a variedade de tons, às vezes o movimento. Algumas deixam impressão indelével.

           Poetas me deixam intrigado. Tenho alguns amigos que possuem este dom ou sofrem desse mal, dependendo do ponto de vista. Participam de saraus e tertúlias, editam revistas e plaquetes, publicam livros, e certamente leem muito mais poesia que eu. Mais que isso, vivenciam. Alguns são pródigos, outros avaros. Uns agitam bandeiras, outros são introspectivos. Há os que provocam risos e os que cutucam feridas. Tem poeta coletivo e poeta solitário. Tem poeta que brada e poeta que pede silencio. E tem muito poeta que pensa que é poeta, mas no fundo é só prosa.

        Na semana passada compareci a três eventos literários. Dois deles eram lançamentos de livros de poesia, o que por si só é um ato admirável. Como não elogiar o destemor de editores que acreditam nessa utopia literária?

               Na última quarta feira reencontrei a amiga Rosana Crispim, lá no Patuscada, o simpático bar-café-livraria da Editora Patuá, em São Paulo. Seu Caderno de Intermitências já ganha pontos a partir da capa, feita com a técnica do pinhole pela fotógrafa Fátima Roque. A apresentação de Dalila Teles Vera ilumina e instiga.

                Guardo o livro anterior da poeta, Entretempo, de 2003. É notável a economia de versos, resultado de elaborada decantação. Não sobram palavras, não há derramamentos emocionais, nem efeitos óbvios, e neste Caderno a receita parece ainda mais apurada. Poesia interior, reflexiva, ora especulativa, ora conclusiva, mas sempre convidando o leitor a participar de uma jornada mental que nos leva a portos inesperados. Com em Eloquência:

O silêncio fala

às vezes

fala demais

e até fala

o indizível

o que não há

o que não deve

 

o silêncio por vezes cala

 

            Aprecio a concisão de Rosana Chrispim, e me pego relendo seus poemas, procurando sentidos fugidios e mensagens subcutâneas. Eu, leitor intermitente, peço emprestados seus passos ‘aos caminhos possíveis/ que me percorrem/ pó pedra pão verso’. A poeta afirma que “todas as certezas/ duvidam”, e confessa que, às vezes, “encontro o poema/ não a poesia”. Será?

            No dia 01/07, às 11 h, o Caderno de Intermitências será lançado na Alpharrabio Livraria, em Santo André. O endereço é Rua Dr. Eduardo Monteiro, 151. Um lugar especial, bem frequentado por essa curiosa grei de poetas.

Uma resenha possível

Escher-DrawingHands

 Mergulhar na arte de Escher é sempre uma experiência fascinante. A princípio somos levados a acreditar que sua obra é uma demonstração cerebral de virtuosismo, levada a cabo com uma precisão que só um absoluto domínio técnico pode concretizar. Aos poucos somos conduzidos a outros mundos, onde luzes e sombras se permeiam de tal forma que passam a ser metáforas de realidade e fantasia. Ao invés de esconder seus truques, ele expõe de maneira sistemática o processo de criação, mostrando seu ponto de partida e as etapas que atravessa para alcançar o efeito desejado.

torre de babel

Escher pode partir de experiências concretas, como as anotações feitas durante suas viagens, para expandir nossa percepção com a revelação de detalhes que só uma mente inquieta e astuciosa poderia descrever. Outras vezes parte de um mito, como a lendária Torre de Babel, para delinear uma fantástica hipótese sobre a ambição e a pequenez do ser humano. Seu repertório de maravilhas também é criado a partir de objetos imaginários, como o Anel de Möbius, envolvendo nossa percepção com um jogo de ir-e-vir, de citações e invenções, que embaralham tempo e espaço, ordem e caos.

wallup.net

Acima de tudo, Escher é um perfeccionista. Aquilo que oferece ao nosso olhar é a obra perfeita, burilada com paciência, fruto de uma rigorosa pesquisa cujos rascunhos não nos é permitido ter acesso. Mas antes que algum desavisado leitor conclua que louvo apenas a feitura impecável, peço que redobre a atenção para as frestas intencionalmente presentes em toda a sua obra, por onde vislumbramos a presença impalpável da poesia, as marcas da experiência vivenciada, a sombra imemorial da morte, as nuances delicadas da emoção.

escher_auto-retrato

Mergulhar na arte de Edmar Monteiro Filho é sempre uma experiência fascinante. A princípio somos levados a acreditar que sua obra é uma demonstração cerebral de virtuosismo, levada a cabo com uma precisão que só um absoluto domínio técnico pode concretizar. Aos poucos somos conduzidos a outros mundos, onde luzes e sombras se permeiam de tal forma que passam a ser metáforas de realidade e fantasia. Ao invés de esconder seus truques, ele expõe de maneira sistemática o processo de criação, mostrando seu ponto de partida e as etapas que atravessa para alcançar o efeito desejado.

Dia e noite

Edmar pode partir de experiências concretas, como as anotações feitas durante suas viagens, para expandir nossa percepção com a revelação de detalhes que só uma mente inquieta e astuciosa poderia descrever. Outras vezes parte de um mito, como a lendária Torre de Babel, para delinear uma fantástica hipótese sobre a ambição e a pequenez do ser humano. Seu repertório de maravilhas também é criado a partir de objetos imaginários, como o Anel de Möbius, envolvendo nossa percepção com um jogo de ir-e-vir, de citações e invenções, que embaralham tempo e espaço, ordem e caos.

Ordem e Caos

Acima de tudo, Edmar é um perfeccionista. Aquilo que oferece ao nosso olhar é a obra perfeita, burilada com paciência, fruto de uma rigorosa pesquisa cujos rascunhos não nos é permitido ter acesso. Mas antes que algum desavisado leitor conclua que louvo apenas a feitura impecável, peço que redobre a atenção para as frestas intencionalmente presentes em toda a sua obra, por onde vislumbramos a presença impalpável da poesia, as marcas da experiência vivenciada, a sombra imemorial da morte, as nuances delicadas da emoção.

livro do edmar

(Atlas do Impossível, Ed. Penalux, 244 p. Quinze contos inspirados em gravuras de M C. Escher).

Escritura do desejo

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É possível mapear, na literatura brasileira contemporânea, uma vertente ficcional que tem como característica a narrativa em primeira pessoa e que entremeia ficção e vivência real do(a) autor(a), deixando de lado a pesada carga de criar um universo diegético próprio, fundamento do romance clássico que marca boa parte da produção dos séculos XIX e XX. Na prática, estes autores se apropriam do mundo real como cenário de suas narrativas, e com calibragens variadas reportam experiências ouvidas, lidas, assistidas ou vividas, citando ruas reconhecíveis, fatos que presenciamos, botecos que frequentamos ou escolas quase idênticas às nossas. Às vezes dão a impressão de que descrevem bocas que um dia beijamos.

O primeiro romance de Marcos Kirst, Eu Queria Que Você Soubesse, pode ser colocado nesta prateleira. No entanto, percebemos de cara que não é um noviço. Kirst se coloca de forma consciente e madura nessa corrente, mas se diferencia dos autores jovens pelo amplo arco narrativo, que abarca mais de três décadas.

A forma límpida, quase coloquial, com que a narrativa se inicia, vai sendo sutilmente acrescida de lembranças, reflexões e observações irônicas. Apesar do início trágico e do clima sofrido de acerto-de-contas no final, há um fino e amargo humor nas entrelinhas, que emerge aqui e ali em frases cortantes e inesperadas.

É evidente a intenção de fugir do denominador comum de gênero literário. A narrativa começa em tom policial, mas não sai em busca de um criminoso. Finge ser um romance de formação, mas logo se afasta dos chavões do gênero. Contorna com habilidade o surrado tema da paixão não correspondida, demarcando desde o início a impossibilidade de uma consumação. Por fim, cria mulheres fortes, bem delineadas, que fazem bom contraponto com o inseguro protagonista.

Pela biografia do autor, gaúcho de Ijuí, e  pela narrativa em primeira pessoa, supomos que muito do que está sendo dito/escrito seja reflexo do próprio. Afinal, a história tem início numa pequena cidade do Rio Grande do Sul, na década de 70, desdobrando-se depois em Porto Alegre, Camboriú, São Paulo…  O truque de criar um narrador mais velho serve como álibi, mas não elimina as suspeitas de que o que estamos lendo marcou a vida de Marcos Kirst. Parafraseando Pessoa, poderíamos dizer que o romancista é um fingidor.

O que emerge nas 150 páginas da trama é a forte pulsão sexual, catalisadora de uma série de ações que determinam, para o bem e para o mal, o desenrolar da narrativa. O clima de ditadura dos anos 70 e 80 é descrito em pinceladas rápidas, deixando no ar o ambiente sombreado pela censura e a impunidade que até hoje grassa no país. O foco é o do narrador, um contador (pode existir profissão mais anti-heroica?) que idealiza uma paixão de juventude a tal ponto que toda a sua vida adulta vai ser determinada por isso.

Até que surge outra mulher…


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