Arquivo para fevereiro \26\-02:00 2016

Henry James revisitado

capaloja-hjamesComentei em janeiro, aqui no Fósforo, a minha decisão de Ano Novo, tomada há quase duas décadas, de ler pelo menos um grande clássico por ano. E 2016 começou bem, com um dos grandes da literatura de língua inglesa: Henry James. Foi com muito prazer que li Os Papéis de Aspern, em nova edição – aliás impecável – da Penalux.

            Muito já foi dito sobre James, um dos mestres fundadores da moderna literatura do século XX, juntamente com seus contemporâneos Proust e Tolstói. As longas e tortuosas frases, o estilo cheio de nuances e os diálogos ricos em ambiguidades definiram seu estilo. A exploração psicológica dos personagens mexe com a percepção do leitor, iluminando novos sentidos e justificando atitudes e conflitos. Não à toa, era irmão de William James, um dos pais da psicologia funcional, e devem ter trocado algumas ideias e opiniões com certa frequência.

            Apesar de ligado à escola realista, Henry James tornou-se famoso pelas suas histórias de fantasmas. A mais famosa é A Volta do Parafuso, que teve a sorte de ter uma adaptação para o cinema, dirigida por Jack Clayton (Os Inocentes, 1961). As atuações marcantes de Debora Kerr e Meg Jenkins contribuíram para a fama de um dos filmes de suspense e terror mais aplaudidos de todos os tempos.

Deborakerr

The Innocents (1961) Directed by Jack Clayton Shown: Peter Wyngarde, Deborah Kerr

            Não há fantasmas em Os Papéis de Aspern, pelo menos no sentido sobrenatural. Jeffrey Aspern é um poeta romântico fictício, idolatrado pelo narrador do romance, um editor cujo nome nunca é citado. Sabendo que uma centenária amante do poeta tem a posse de cartas e papéis que podem ser valiosos, tenta se aproximar dela sem muitos escrúpulos, tornando-se seu inquilino.

            A ação se passa toda em Veneza, cidade romântica por excelência. O que mais impressiona na narrativa é a habilidade com que vai se revelando a personalidade do protagonista, à medida em que ele se envolve com a sobrinha da velha senhora, uma mulher de meia idade sem atrativos e completamente submissa à tia.

            Além da trama engenhosa e do final surpreendente, James nos envolve com sua narrativa densa e cheia de sutilezas. Paira sobre todo o livro uma espécie de humor perverso, que zomba das fraquezas e desejos de todo ser humano.

            O tradutor Chico Lopes nos informa, em saboroso prefácio, que Henry James gostava mais dos Papéis de Aspern que da Volta do Parafuso, apesar do maior sucesso deste. Infelizmente, Aspern não teve a mesma sorte no cinema, tendo uma única e pouco apreciada adaptação em 1947.

            Ler ou reler James no século XXI nos dá a dimensão exata de quanto sua influência foi marcante em todo o século passado. James, que esteve várias vezes em Veneza, encontrou o cenário ideal para os caminhos fluidos de sua linguagem. Sua narrativa líquida, mansa, aparentemente tranquila, deixa entrever em breves momentos o que se passa no fundo. Para completar, as ilustrações de Silvana de Quadros ajudam a compor a imagem de uma Veneza idílica, misteriosa e ciosa de seus segredos. Um livraço!

Um fuçador de dicionários

Dicionario

Já comentei algumas vezes aqui no Fósforo sobre a minha paixão por dicionários. Desde que comecei a ler jamais consegui procurar o significado de uma palavra sem espiar, curioso, para as anteriores e seguintes. O próprio ato de abrir um dicionário em qualquer página faz com que alguns verbetes saltem aos olhos, luzindo feito pirilampos. Palavra enrosca em palavra, remete a outra e mais outra, e mais de uma vez  acabei me esquecendo do que fui procurar no início.

            Com isso, me tornei um craque na antiga brincadeira de “dicionário”. Um grupo de pessoas numa mesa, munidas de papel e caneta. E um dicionário, claro. Uma por vez abria o Aurelião numa página, escolhia uma palavra esquisita e copiava ou inventava um significado. Em cada rodada, os papéis são lidos em voz alta. Quem acertar, ganha pontos, mas quem inventar o significado mais verossímil e enganar os outros ganha pontos também. Eu adorava inventar coisas do tipo “prostigmato: ambiente reservado às prostitutas, na Roma antiga”, e ainda acrescentava que estava ali embutida a palavra estigma. Porém todo mundo caía na risada quando era revelado que prostigmato é uma ordem de ácaros, com mais de 14 mil espécies…

            Brincadeira em extinção, parece. Cada vez menos os lares abrigam um dicionário impresso, que possa rodar sobre a mesa. Eu mesmo, embora ainda guarde meu Aurelião, adotei o Houaiss eletrônico na labuta diária. Mas tenho um dicionário de tupi-guarani, um de folclore, outro de comunicação, um de música, um de mitologia, um de antônimos e sinônimos, e vários bilíngues.  Se você procurar, existe até dicionário de palavrão!

          Hoje mesmo fiquei abismado ao tropeçar na palavra próstoma. Inventei na hora que seria um hematoma na próstata, mas não havia ninguém brincando de dicionário comigo. Segundo o Houaiss, é “pequeno furo pelo qual as formigas penetram no tronco das embaúbas, onde costumam estabelecer colônias.”

          Pense na especificidade desse substantivo! Se fosse um furo em qualquer outra árvore não teria este nome, só é válido para a embaúba. Se pelo furo entrasse um besourinho, em vez de formiga, talvez nem fosse dicionarizada. Nossa língua não conseguiu inventar uma palavra pra definir mulher (ou homem) sem filhos, por exemplo, mas criou defenestrar (ato de atirar algo ou alguém pela janela) e próstoma. Intrigante, não acha?

          Nasci em Salvador, e muitas vezes vi expressões de espanto quando dizia ser soteropolitano. Imagine se tivesse nascido em Jerusalém! Faz ideia? Respire fundo: hierosolomita ou hierosolomitano. Pode-se trocar o h por j. Também está lá, devidamente qualificado. Vou calar sobre o que inventaria sobre a palavra hierosolomita no velho jogo de dicionário…

          Costumo evitar termos científicos ou técnicos, sejam químicos, zoológicos, médicos, etc. Senão fica muito fácil enganar os leigos! Saber que um cálutron é um separador eletromagnético de isótopos de urânio e outros elementos não me tornaria mais sabido, apenas oportunista. O melhor da brincadeira é descobrir palavras que estão (ou estariam) à tua volta, no cotidiano. Você, que nasceu no interior, sabe que é um hinterlandiense? E você, mulher que não é mais virgem, sabe que é bulida? Tu, gordinho e baixinho, sabes que é um buzarate? E que teu oposto, um indivíduo alto e magro, é um escanifre?

            Infelizmente, não inventaram uma palavra que defina “fuçador de dicionários”. Algo como glosso-adepto (ou amante, fanático, devotado, adicto). Parece que foi Borges quem respondeu, certa vez, ao ser perguntado sobre qual livro levaria para uma ilha deserta: “Um dicionário. Nele está contida toda a literatura.” Não sei se as palavras foram exatamente estas, mas está no meu analecto de estimação.

Memórias insulares

Dalila

“Terra,

Quando te cinges de água,

Tanto mistério se encerra.”

(de uma antiga canção praiana)

            Termino a leitura de Solidões da Memória (Dobra Editorial/ Alpharrabio, 2015), de Dalila Teles Veras, com a sensação de ter compartilhado uma viagem atemporal. Mais que um conjunto de poemas, o livro é o itinerário poético e existencial de uma menina nascida na ilha da Madeira que vem para o Brasil com onze anos e retorna, adulta, ao cenário da infância.

            A primeira parte do livro, que tem o belo nome de Insularidade, é primorosa. Lançando mão de epígrafes de poetas e fadistas de ambos os lados do Atlântico, Dalila nos revela em cada poema fotogramas de um filme íntimo cujas sensações podem ser intransferíveis, mas são ali compartilhadas.

Havia manhãs

em que ao abrir da janela

era só o mar e o mar

o mar

o mar

o mar.

            Poesia quase tátil, de uma criança cercada pelo mar quase infinito. Cada poema é um indício e uma construção. A escola, as primeiras letras, os trajetos circulares, as personagens esculpidas em vento e sal. A paisagem vai ganhando nitidez ao nosso olhar também salgado de lembranças.

            O breve capítulo “aventura em preparo” fala da última fotografia na ilha e do baú de viagem, feito pelo tio. “Ali, na austeridade da arca/ a casa/ reduzida ao essencial.”

            A terceira parte, “travessia e chegada/ ruptura” enriquece ainda mais o leque de imagens e sensações. “onze foram os dias/ enjoo, sarna e tédio”. O primeiro porto, Recife, revela os “torsos negros azuis suados/ e o cheiro despudorado/ do abacaxi a anular o resto”.

 A quarta parte, “regresso ou tentativa de”, é a mais pungente. Quem retorna ao Funchal não é mais a menina, mas a mulher adulta, vivida, que já não cabe na ilha (ou em outro lugar qualquer). Busca a “paz impossível” no mergulho da memória, e parafraseia Drummond: “a madeira não é apenas fotografias (…)/ mas é/ a memória do que não foi/ e sequer dói”.

O livro se completa com um indispensável roteiro (“dos registros prévios”), onde a autora investe na palavra rizoma e todos os seus significados. Ali explicita que “o mar invade os sentidos, especialmente o olfato e o olhar, mas é o subterrâneo que me interessa.”

Eu, nascido também à beira mar de outra ilha, a qual chamam continente, e transplantado para São Paulo com dez anos, mergulhei na “líquida travessia” de Dalila Teles Veras como se levado pela mão de uma amiga de infância. E, confesso, voltei outro.

 

 

Trumbo e o macarthismo

Dalton Trumbo é um nome desconhecido para a maioria dos brasileiros. Muitos ficam surpresos ao saber que o cara enganou todo o establishment de Hollywood e ainda assim levou dois Oscars usando pseudônimos, além de um com o nome real. Não porque quisesse, mas porque a infame perseguição ideológica durante o período da Guerra Fria o obrigou a trabalhar de forma clandestina.

                Durante a 2ª Guerra, a aliança dos EUA com a URSS, contra o nazismo,  fez com que americanos de esquerda, socialistas e comunistas se organizassem livremente na “maior democracia do mundo”. Terminada a guerra, a disputa entre as duas potências mudou o clima interno. Qualquer um que fosse acusado de ser vagamente de esquerda era estigmatizado, ofendido, visto como traidor. Milhares perderam seus empregos, muitos foram presos e condenados sem a menor prova. O caso mais emblemático foi o de Ethel e Julius Rosenberg, condenados e executados por supostamente venderem segredos militares para os soviéticos nos anos 50, o que nunca se comprovou. O caso rendeu protestos e manifestações em todo o mundo, e Daniel, romance de E.L. Doctorow sobre o filho do casal, virou filme em 1983, dirigido por Sidney Lumet.

Daniel Lumet

                A paranoia fascista do macarthismo foi dirigida principalmente a sindicatos, associações de trabalhadores, universidades, artistas e intelectuais. Nada muito diferente do que vivemos hoje no Brasil, com agressões públicas a pessoas de esquerda, sejam políticos, sindicalistas ou artistas. A maior diferença é que lá o Congresso perseguia e punia sem provas, aqui a própria Justiça se encarrega disso.

Hollywood, claro, não escapou à sanha persecutória. Atores, diretores e roteiristas foram convocados para explicar suas atividades “subversivas” em Washington, perante uma comissão parlamentar liderada pelo senador McCarthy. O grupo chamado de “Os Dez de Hollywood” tornou-se um símbolo, por declarar o depoimento ilegal e se recusar a responder, alegando em sua defesa a Primeira Emenda da Constituição americana. Para os democratas, um símbolo de resistência. Para a grande maioria do povo, manipulado pela mídia e suas manchetes escandalosas, símbolo de “traição à pátria”.

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Esposa e filhos de Trumbo seguram a placa com seu nome

Trumbo era um deles. Ao sair da prisão, com o nome na lista negra dos grandes estúdios, começou a escrever na clandestinidade. Vendeu roteiros vagabundos de filmes classe C, que escrevia em três dias, para sustentar a família. Um desses filmes, The Brave One (Arenas Sangrentas, no Brasil) foi surpreendentemente indicado para o Oscar de melhor roteiro em 1956. Premiado, o misterioso autor Robert Rich não compareceu, sendo o primeiro Oscar não recebido da história. Outro filme, Roman Holiday (A Princesa e o Plebeu), vencedor dois anos antes, tivera o Oscar de melhor história original recebido por Ian McLellan Hunter, amigo de Trumbo que serviu de testa-de-ferro.

Roman Holiday

Audrey Hepburn e Gregory Peck

            Testa-de-Ferro por Acaso, aliás, é um filme de 1976, dirigido por Martin Ritt e estrelado por Woody Allen, que narra de forma ficcional este subterfúgio utilizado por Trumbo e seus colegas durante o macarthismo. Não por acaso, o filme tem a participação de Zero Mostel, comediante que esteve na lista negra. O antissemitismo se confundia com o macarthismo, e muitos judeus, como Mostel, foram acusados de simpatia pelo comunismo. Nem Charles Chaplin escapou dessa…

Mostel Allen

Mostel e Allen

Chega agora às telas Trumbo – Lista Negra, dirigido com habilidade por Jay Roach e interpretado de maneira admirável por Bryan Cranston, indicado ao Oscar de melhor ator. Centrado na figura de Dalton Trumbo, o filme mostra seus conflitos, a crise familiar, a sua firmeza de caráter (que às vezes se confundia com teimosia), e principalmente a sua genialidade. O cara escrevia na banheira, se entupindo de álcool, tabaco e anfetamina, e produzia a tal ponto que chefes de estúdio notoriamente direitistas acabaram tendo que engolir seus roteiros.

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            Amigos pessoais, como Edward G. Robinson, fraquejaram perante a inquisição, e delataram os companheiros. Outros perderam família, emprego, propriedades e até a vida. Direitistas como John Wayne, Ronald Reagan e Hedda Hopper são retratados fielmente, e liberais como Kirk Douglas e o diretor Otto Preminger acabam se tornando os responsáveis pelo resgate de Trumbo, contribuindo com isso para o fim da odiosa lista negra. Convidado por Douglas, Trumbo assina o roteiro de Spartacus (1960), dirigido por Stanley Kubrick, com seu verdadeiro nome.

            O filme termina com esse retorno triunfal. Mas Trumbo não parou nos anos 60. O único filme que dirigiu na vida é o clássico antibelicista Johnny Vai à Guerra (1971), baseado numa novela de sua própria autoria. Um forte e comovente libelo contra a insanidade da guerra, seja ela qual for (no caso, era a Primeira Mundial). O último roteiro que escreveu foi para o filme Papillon (1973), dirigido por Franklin J. Schaffner e estrelado por Steve McQueen e Dustin Hoffman.

            Quando cursei Cinema, em meados do século passado, Trumbo já era um mito. Quando me tornei roteirista, já ocupava lugar de destaque no meu panteão. Finalmente um filme faz justiça a esse grande nome do cinema, responsável por grandes histórias e diálogos memoráveis. A única indicação ao Oscar de 2016 é para o (excelente) Bryan Cranston, porque roteirista e diretor que mexa com esses esqueletos escondidos no armário hollywoodiano ainda não é muito bem visto pelos poderosos. É também notável a atuação de Helen Mirren interpretando a jararaca Hedda Hopper, célebre colunista de fofocas que delatou muita gente do meio artístico.

            Enfim, um filme digno, muito bem realizado, que joga luz sobre um período que muitos americanos gostariam de esquecer. E reverencia a figura exponencial de Dalton Trumbo, um dos maiores roteiristas e escritores que Hollywood teve a honra de acolher/perseguir/punir/reabilitar.


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