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A consagração de Juçara Marçal

Os prêmios arrebatados por Juçara Marçal (álbum do ano, canção do ano, prêmio Multishow 2021) e seu parceiro e produtor musical Kiko Dinucci, permitem algumas reflexões sobre a música popular brasileira nos dias de hoje.

As transformações da canção no século XXI ainda incomodam a muitos. A incorporação definitiva da eletrônica na textura sonora, a busca incessante de uma simbiose com a imagem videográfica, a pesquisa de outras formas de discurso, o abandono da eufonia em troca da aspereza, do ruído, da incômoda dissonância, tudo isso faz com que espíritos mais conservadores sejam refratários a qualquer audição.

Dissonância é um termo chave nessa proposta. Não podemos esquecer que a bossa nova incorporou dissonâncias até então inexploradas na música brasileira, e por isso foi acusada de ser “jazzística”. O próprio jazz americano moderno (estou falando dos anos 50!) foi muitas vezes acusado de fazer ruído, e não música. Em poucas décadas isso foi incorporado, assimilado, virou cultura. Hoje escutamos as bossas mais dissonantes como trilha sonora de bares, restaurantes e namoros, e soa (quase) natural.

A partir dos anos 60, os instrumentos elétricos conquistaram um espaço definitivo na música popular de todo o planeta. Não só guitarra e baixo, que são apenas violões amplificados e distorcidos, mas instrumentos – principalmente teclados – que criam sons antes não existentes. Depois dos sintetizadores, moogs e similares, surgiram os samplers, que copiam e transformam e multiplicam sons.

A técnica gera uma nova estética? Claro, está mais que comprovado. Isso não significa o abandono das formas musicais anteriores, mas um acréscimo. A levada de violão acústico de Benjor é copiada e enriquecida (ou não, aí entra a questão do talento) de outros timbres, assim como o trompete de Miles Davis. E a tudo isso veio se somar o rap, o discurso poético sobre base rítmica que desbancou o rock em escala planetária como música mais amada pelos jovens.

A grande – enorme! – Elza Soares é uma das poucas estrelas de meados do século XX que mantém uma fina sintonia com essas mudanças. Gal, em seu disco mais experimental, Recanto, produzido por Caetano Veloso, demonstrou estar atenta e forte. O próprio Caetano em seu último álbum autoral, Meu Coco, incorpora vários elementos contemporâneos, provocando certo incômodo em seus antigos fãs.

No entanto, uma ou duas gerações de cantoras, cantores, compositores e compositoras floresceram neste século. E aqui temos de relembrar o filósofo alemão Theodor W. Adorno, que em 1938 publicou seu polêmico ensaio “O fetichismo na música e a regressão da audição”. O fetichismo a que se refere é uma releitura de Marx, que pontificou sobre o fetichismo da mercadoria. Adorno redefine a música como produto (mercadoria) cultural, e desfia uma série de considerações sobre música séria e música de consumo, concluindo que os valores estéticos se relativizam na Modernidade, mas continuam subordinadas a uma moral vigente.

Não cabe aqui se aprofundar nas considerações de Adorno, mas apenas pontuar que estas inquietações estavam presentes no início do século XX. Para muitos, o ensaio de Adorno era uma resposta a Walter Benjamin. O célebre “A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica” (1936) colocou em xeque questões importantes como a aura da obra única, a cópia, a reprodução gráfica, fonográfica, cinematográfica, etc. Ou seja, não existe um filme, gravura ou disco “original”, só cópias.

O disco de vinil morreu, enquanto mercadoria de consumo em alta escala. O CD, seu sucessor, dá seus últimos suspiros. Música de consumo hoje é um produto virtual, embora nenhum youtube da vida tenha conseguido desbancar os shows ao vivo, presenciais, mesmo com pandemias de ignorância. Uma coisa é festa, dança, outra coisa é fruição estética, apreciação de uma obra, como queria o velho Adorno.

Mas o que tem a ver Juçara Marçal com isso? Tudo. A inquieta artista é bem mais que uma cantora. Toca, canta, compõe, e está presente nas principais formações musicais da cena paulistana do século XXI. Desde seu trabalho de pesquisa e recriação das canções ancestrais com o grupo A Barca, seja em trabalhos solo ou em rascantes interações com músicos de vanguarda como no grupo Metá Metá.

Juçara carrega em si a ancestralidade negra. Suas composições, próprias ou em parceria, remetem a entidades, sonoridades e poéticas africanas. Ao mesmo tempo, ela atravessa a corrente dominante da MPB como um corpo estranho, sem se curvar às bossas dominantes. Retempera e acrescenta à tradição pré-samba as experimentações sonoras contemporâneas, com direito a todas as distorções, ruídos, samplers e barulhismos que os tradicionalistas odeiam. Como intérprete, iluminou canções de Mauricio Pereira (Trovoa) ou Siba (Vale do Jucá) de forma definitiva, mas sempre negou a música-mercadoria, pra tocar no rádio.

Juçara recusa as formas dominantes da música popular e trabalha numa hipotética intersecção entre passado e futuro, numa geografia muito pessoal. Não é apenas uma intuitiva, mas uma acadêmica, formada em jornalismo e letras pela USP.  Não há dúvida de que leu Adorno e Benjamin, ama e respeita os mestres consagrados da MPB, mas não vai sair por aí cantando samba-canção. Coloca-se de corpo e alma a serviço da invenção de um novo mundo sonoro. Um pé na África, outro em Marte.

Quer conhecer mais?  

Recomendo a audição atenta de seu trabalho-solo Oritá Metá (https://www.youtube.com/watch?v=91yEqOwNwiY). Tá tudo ali, de forma genial. E estranhamente bela.

(Publicado originalmente em A Terra É Redonda e Revista Música Brasileira).

Outra Veneza

VenezaPor mais familiar que seja seu nome, o narrador não está de fato presente entre nós, em sua atualidade viva. Ele é algo de distante, e que se distancia ainda mais.”

Com estas palavras Walter Benjamin inicia seu famoso ensaio O Narrador, onde questiona (entre outras coisas) a crise do romance como forma literária que atingiu o apogeu no século XIX, e mostrava certo esgotamento no início do século XX. Benjamin escreveu na década de 30, e provavelmente reveria esta opinião se vivesse mais algumas décadas.

O romance reinventa-se? Melhor dizer que alguns autores inventam, muitos repetem fórmulas, e alguns retomam paradigmas com uma nova abordagem.

Alberto Lins Caldas pertence à última categoria. Poeta praticante, contista experimentado e romancista reincidente, é antes de tudo um cultor da língua. Explora as possibilidades do verbo em todas as suas conjugações, flerta com o latim, manipula o sentido das palavras e persegue a recriação de mundos imaginários.

Em Veneza (Penalux, 2016, 181 páginas), o ponto de partida é atraente, mas não o principal atrativo. O autor afirma no prefácio ter encontrado um texto perdido num arquivo “de um Estado que não quero recordar o nome”, escrito em francês do século XVIII por um certo Pierre Bourdon, aventureiro cuja narrativa se inicia com uma fuga do leito de uma mulher casada, para fugir de um flagrante, em Veneza.

Acompanhado de seu fiel criado, Mouro, embarca num navio e vem parar em latitudes austrais. Desembarca numa outra “Veneza” nunca nomeada (mas não esqueçamos que o autor é pernambucano!), onde a descrição de cenários, comidas, cheiros e costumes remetem aos clássicos relatos de viajantes e naturalistas, que influenciaram até Gilberto Freyre.

A grande viagem de Veneza é a linguagem. Caldas se diverte escrevendo de forma barroca, cheia de latinismos e citações, ao mesmo tempo em que, na pele do personagem, coloca questões estéticas e existenciais. O narcisismo, a mulher como objeto idealizado de desejo, a relação nunca bem explicada entre servo e senhor, a imensidão de uma alma inquieta aprisionada numa existência pouco mais que medíocre, salva pela vontade de deixar um depoimento para a posteridade.

O cavaleiro Pierre encontra um tradutor à altura. O romancista Alberto escolhe um caminho árduo, mas pleno de delícias para quem ousar trilhá-lo. Na contramão do senso comum, escreve no século XXI um romance sem facilidades, sem mesmices, entranhado de humor temperado com certa dose de melancolia, onde talvez falte apenas um grande final. Mas é a transcrição de um manuscrito, um velho Códice, de onde não podemos esperar uma arquitetura romanesca como aquela que Benjamin julgou esgotada, certo? Grand finale é coisa de romance do século XIX, coisa com a qual Pierre Bourdon nunca chegou a imaginar.

Literatura como espelho

2a

A leitura de dois romances, neste início de 2015, me surpreendeu por várias coincidências, embora tenham sido escritos em décadas diferentes, por autores de estilos diversos (um brasileiro, outro espanhol) com abordagens distintas.

Quando Walter Benjamin, lá na década de 30, apontou a decadência da velha narrativa que desde a Antiguidade norteava os rumos da literatura ocidental, os ficcionistas modernos se viram diante de um dilema. De forma ligeira, podemos dizer que as grandes narrativas eram fruto da experiência vivida, de relatos heroicos, de testemunhos trágicos. Não que os autores tivessem realmente passado pelas guerras, traições, amores e descobertas que relatavam, mas criavam personagens verossímeis – supondo que Don Quixote seja verossímil – , que narravam suas peripécias. De Homero a Dante, de Shakespeare a Melville, há um narrador subentendido em cada trama, ora explícito, ora invisível. Se invisível e onisciente, era quase divino, mas fazia notar sua presença.

O inquieto Benjamin falava da morte do romance, que atingiu sua plenitude no século XIX e esgotava as possibilidades narrativas no início do século XX. A história pouco a pouco deixava de ser uma forma de transmissão de conhecimento, por falta de experiência do escritor. Autores modernos já não lutam em batalhas, singram oceanos, vivenciam amores românticos (é duvidoso este ponto), ou brigam contra a natureza.

Narradores modernos já não podem dar conselhos, contar fábulas moralistas, ensinar lições. Eles colocam no papel (ou nos palcos, ou nas telas) seus anseios, suas dúvidas, seu cotidiano torturado, suas obsessões. Podem ser explícitos ou criar personagens que os representem, e nisso não se diferem da postura romântica. Mas reconhecem a saturação das histórias com começo-meio-e-fim, e colocam, cada vez mais, um escritor-personagem (sempre em crise) no meio da história.

            E aqui abro um parêntesis para lembranças estudantis. Nos tempos da universidade, nos papos de botequim, era comum brincarmos com a ideia de escrever um livro, fazer um filme, compor uma canção. E uma das revelações mais contumazes depois de algumas cervejas era a de um aspirante a escritor que estava escrevendo um conto sobre um aspirante-a-escritor, um aspirante a cineasta que sonhava com um roteiro sobre um sujeito que queria fazer seu primeiro filme, ou um aspirante a compositor que tinha rascunhado uma canção sobre o desafio de fazer uma canção, o que era quase a mesma coisa.

            Ríamos muito, como todo jovem inconsequente. Certa noite batizamos o movimento de umbiguismo, que seria o sucedâneo perfeito do romantismo, do realismo, do naturalismo e até do surrealismo. Hoje, quando me aproximo de ser um velho inconsequente, permito-me intrometer essas lembranças pessoais neste pequeno texto, sem receio de parecer pueril.

            Falava, se ainda lembram, de dois romances. Um é Documentário, de Tiago Novaes. Outro é O Motivo, de Javier Cercas. Mais uma coincidência: foram-me presenteados por duas pessoas queridas, que amam a literatura, e a ela se dedicam, cada uma a seu modo.

            Tiago é uma jovem revelação da literatura brasileira. Seu romance pós-moderno foi contemplado com a Bolsa de Criação Literária da Funarte, sendo escolhido depois para publicação, em 2012. Psicanalista de formação, já havia escrito contos e roteiros. Aliás, o livro é acompanhado de um DVD com o documentário Herança, dirigido por ele. As imagens completam (e embaralham) alguns capítulos da anti-narrativa empreendida pelo autor. São retratos de família, e o próprio Tiago aparece ali retratado.

            De início, somos apresentados a dois personagens: um psicanalista e um escritor. Um conversa com o outro, e os dois falam para o leitor. Não há um enredo propriamente dito, como apontaria Benjamin, mas impressões e conflitos narrados de forma elaborada e sutil. Tiago Novaes escreve bem, cria belas imagens, faz observações interessantíssimas como o personagem Psicanalista. Como o personagem Escritor, mostra-se perdido no labirinto benjaminiano, à procura de uma boa história. Para complicar (literatura contemporânea não pode ser simples, desde Joyce), surgem citações de outros não-escritores, como Van Gogh, Woody Allen ou Tarkovski, personalidades inquietas perante os mistérios do mundo.

            A terceira e última parte do livro, Perlaboració, é um fluxo narrativo vertiginoso, de alta densidade poética, que lembra os melhores momentos de autores como Lispector ou Cortazar, mas que também “significam nada” (últimas palavras do livro). Ou tudo. O modo como está dito é mais importante do que o que está sendo dito.

            Javier Cercas é mais conciso, claro, definido. Não quer criar uma nuvem, mas uma esfera sólida, sem furos. Escreveu uma novela (menos de 100 páginas) astuciosa, sobre, claro, um escritor que quer escrever um romance. Seu personagem tem nome, ao contrário dos de Tiago. Não é Javier, mas Álvaro. Subterfúgio bobinho, ficaria mais legal se fosse mesmo Javier. Enfim, um escritor decide escrever uma história onde um casal de vizinhos em crise assassina um velho que mora no último andar. Por dinheiro, claro. O escritor instala-se no seu apê, procura um velho solitário (sempre há um), um casal vizinho (e sempre há uma crise). Provoca situações que o inspirem, pois não consegue inventar uma história, precisa produzir fatos reais. Com precisão de relojoeiro, vai montando a trama de modo que terminemos a leitura com a impressão de que é o relato verídico de um crime. O problema é que personagens reais “sempre introduzem novas variáveis que alteram o curso do relato”. Um último parágrafo nos devolve ao início de tudo, e ao começo da história, onde um escritor tenta escrever uma história. Redondo e cristalino como uma bola de gude.

            Não, nenhum dos livros termina assim. Seria uma concessão aos antigos narradores. Há a necessidade pós-moderna de um adendo, de uma justificativa, de uma proposição teórica. No caso de Novaes, o quarto capítulo é uma fortuna crítica, com ensaios de Reynaldo Damazio e Julián Fuks. Inteligentes, pertinentes, dão a impressão de que o romance ficaria incompleto sem eles.

            O livro de Javier Cercas (que é autor do best seller Soldados de Salamina, onde também há a figura central de um narrador) traz o comentário de Francisco Rico, figura respeitável da crítica espanhola, e de quem Javier foi aluno. Rico cita Cervantes, Zola, Flaubert e Cortázar, mas se rende á evidência de que o “fazer literatura” é o tema central do quase-romance.

            Ler os dois livros em sequência talvez não seja recomendável. Cai como uma feijoada no almoço e uma paella no jantar. Mantida certa distância entre eles, vão provocar boas sensações. Mesmo assim, confesso que a leitura consecutiva me ajudou a queimar para sempre um conto escrito nos anos 80, depois de uma daquelas noitadas estudantis, onde um jovem tenta escrever um conto sobre um jovem que tenta escrever um conto. O mundo será poupado de uma obra menor do umbiguismo.


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