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O Centenário + 20 de Ladário Teixeira

vô ladário

                É provável que você, mesmo sendo um amante da música brasileira, nunca tenha ouvido falar de Ladário Teixeira. Se nasceu em Minas Gerais, a chance aumenta. Se é de Uberlândia, deve estar sorrindo, orgulhoso, pois é nome de praça e escola pública. Pois foi ali, em 10/09/1895 que nasceu o grande compositor e saxofonista Ladário Teixeira, uma lenda da musica brasileira.

Sua biografia é daquelas que dariam um belo filme, cheia de episódios incomuns. Pra começar, Ladário era cego. Interessou-se por música ao encontrar um velho sax de seu pai, abandonado no porão de sua casa. Pense numa sequência de imagens onde os moleques da rua sobem em árvores, empinam pipas, jogam bola no terreno baldio. Esqueça essa última parte, o futebol ainda não havia chegado a Uberlândia. Corta para o jovem Ladário tocando solitário no porão, desvendando os mistérios do instrumento.

Ladário logo percebeu que era capaz de produzir sonoridades inacreditáveis no seu sax. As primeiras apresentações se deram em dupla com o clarinetista (e futuro maestro) Barraca, que escondia Ladário atrás da cortina e pedia para a plateia adivinhar qual instrumento estava sendo tocado. Violino, flauta, celo, clarineta, voz humana…

 Aos 24 anos, Ladário obviamente não sabia ler ou escrever. Após tocar no Instituto Benjamin Constant, em Belo Horizonte, foi convidado a fazer um curso, e em pouco tempo se tornou professor de Brayle, e por toda a vida um militante em defesa dos direitos dos deficientes visuais. Mas de volta ao triângulo mineiro, percebeu que na pequena Uberlândia do século XIX não havia espaço para se desenvolver como músico.

Antes que virasse uma atração de circo, resolve ir para São Paulo e presta concurso para o Conservatório Paulista. Na apresentação escolheu uma música que era um clássico do violino. O professor Altério Mignone (pai do maestro e compositor Francisco Mignone), membro da banca, deu a seguinte sentença: “Teremos prazer em admiti-lo no Conservatório para aprender qualquer outro instrumento, pois para o sax não temos professor que possa ensinar mais do que já sabe”.

Uma vez formado (em violino), Ladário excursionou pela Europa. Suas primeiras gravações, sempre com o sax, foram em 1928, para o selo Parlophon: “Fantasias de concerto 1 e 2” de Wilhelm Popp (erradamente atribuídas a Patápio Silva em vários locais de referência, como o Dicionário Cravo Albin da Música Popular Brasileira), o fox-trot Soluços de Jegue e o tanguinho Canto do Galo, ambos de sua autoria. Registrou também a Canção Sem Palavras (W. Hauer) e Serenata (H. Sitt). Na Odeon gravou Fantasia Brilhante (J.B. Singelée) e Airoso (J.S. Bach).

A história registra que em Barcelona o filho do inventor, Adolphe Sax, beijou-lhe as mãos e disse: “Meu pai inventou o saxofone, mas o senhor fez dele um instrumento digno da admiração do mundo inteiro.” Outro bom causo diz que após se apresentar no Salão Pleyel, em Paris, teve os impostos devolvidos pelo prefeito da cidade em homenagem à sua maestria. O público jamais havia ouvido alguém tocar Rimsky-Korsakov, Liszt ou Berlioz daquela maneira.

 Fato comprovado é que criou um tipo especial de sax conhecido como “Modelo Ladário”, desenvolvido por ele mesmo junto ao fabricante Selmer, adotado nas principais orquestras do mundo. Fez outras turnês pela Europa e Estados Unidos, sendo reconhecido neste país como um dos grandes do instrumento. Ladário casou-se com a pianista e maestrina carioca Aída Dias Teixeira, com quem teve seis filhos.

Esse formidável músico, que teria completado 120 anos em setembro de 2015, morreu em Belo Horizonte em 1964. Merece ser mais conhecido por todos os brasileiros. Sua maestria pode ser comprovada nesta gravação do concerto de Popp. Ladário Teixeira era mesmo genial, confira:

(Publicado originalmente em http://www.revistamusicabrasileira,com.br)

O Canto magistral de Cida Moreira

Cida Moreira é um caso raro na música brasileira. Pianista, atriz e cantora refinada, demonstrou seu talento em dezenas de palcos, seja em peças, musicais, filmes  ou shows de variados formatos. Entertainer completa, é capaz de magnetizar plateias apenas com voz e piano. E quando escolhe os músicos que tocarão com ela, é de bom gosto à toda prova.

Cuidadosa nas escolhas, já gravou de tudo um pouco, passeando por diversos gêneros com segurança e inteligência. Um de seus discos mais memoráveis trazia canções de filmes brasileiros, outro homenageava Chico Buarque. Soledade, seu CD de 2015, é o corolário de uma carreira feita de pequenas obsessões. Estão de volta Milton e Ronaldo Bastos (Um Gosto de Sol), numa interpretação arrepiante, e temas clássicos do folclore brasileiro (Moreninha e Viola Quebrada, de Mario de Andrade), onde opta pelo acompanhamento de violões, violas e acordeom para sublinhar a sonoridade telúrica destas canções.

Chico Buarque também retorna, e de forma surpreendente. Quem mais teria coragem de regravar Construção, depois daquele arranjo original e espetacular de Rogério Duprat?  A resposta é: Cida Moreira. E a canção virou um tango trágico, com sotaque piazzollesco, em arranjo brilhante de Arthur de Faria para quinteto de cordas. Sublime!

Cida recupera preciosidades como a festivalesca Bom Dia, de Gil e Nana Caymmi, e Outra Cena, de Taiguara, faixa que encerrava o antológico LP Ymira, Tayra, Ipy, de 1976. Mergulha no rock do Joelho de Porco, com A Última Voz do Brasil, de Tico Terpins, Zé Rodrix, Ferrante Jr. e Próspero Albanese, e relembra a inusitada parceria de Macalé com Brecht (Poema da Rosa).

Mas Cida não seria Cida Moreira se ficasse apenas presa ao passado. Há várias canções novas, de músicos-parceiros que tocam no disco. A bela Forasteiro, parceria de Thiago Pethit e Helio Flandres, a provocante Oitava Cor, de Luiz Felipe Gama e do português Tiago Torres da Silva, a feroz O Pulso (Titãs), em arranjo eletroacústico que vira de cabeça pra baixo a gravação original, inserindo uma citação de Queda, de André Frateschi. O amigo Nico Nicolaiewski, morto em 2014, é lembrado com a existencial Feito Um Picolé no Sol.

Completam o CD um poema de Alice Ruiz, e duas vinhetas musicais, uma de Arthur Nogueira e Dand M (Preciso Cantar) e outra de Noel Rosa e João de Barro (Pastorinhas), que encerra o disco. Uma viagem magistral por um país onde, segundo a própria cantora, coisas belas estão desaparecendo, enquanto outras vão surgindo. Uma escolha muito pessoal, mas que Cida Moreira interpreta com tal força que acaba dividindo com todos os ouvintes a sua emoção. Um disco definitivo de uma magnífica cantora, com arranjos primorosos e músicos excepcionais. Ouça aqui:

Ná e Zé, definitivos

[CAD3 - 4]  DIARIO/CAD3/1_MATERIAL ... 08/04/15

                 De vez em quando pinta um álbum assim em nossa frente. Um momento de serena beleza, onde tudo se encaixa com perfeição. Ná Ozzetti, uma das cantoras mais completas desse país, retoma a velha parceria com um dos compositores mais sensíveis e originais de nosso tempo. Retoma, sim, pois desde o início da carreira Ná Ozzetti grava Zé Miguel Wisnik. O primeiro disco solo, de 1988, já trazia quatro composições com sua assinatura. Ela gravou outros autores, foi da vanguarda ao baú da história, mostrou sua versatilidade em todos os gêneros, mas sempre se manteve fiel ao início de tudo. E no início de tudo estava o poeta e músico Wisnik.

Mas não se trata de um songbook, longe disso. O CD Ná e Zé é construção conjunta, arquitetura sonora elaborada a duas vozes (em algumas faixas) e dois corações. Há músicas novas e antigas, e a colaboração de ótimos músicos. Sérgio Reze, Swami Jr, Guilherme Kastrup e Marcio Arantes, também produtor do disco. Há  uma participação vocal muito bem sacada de Arnaldo Antunes, outra de Marcelo Jeneci, a guitarra de Gui Held, um arranjo luminoso de Lethieres Leite. E para rebater quem reclama que a melancolia investigativa de Wisnik contamina suas melodias, temos aqui o contraponto da diversidade: rock (ou quase-rock), melodias juvenis, batidas ritmadas, acordes densos, e, claro, também melancolia existencial. Wisnick faz mais do que refletir sobre o fazer musical. Suas letras costuram observações sobre fazer a vida, ou sobre o que a vida faz de nós. E aí encontramos alegria e tristeza, poesia e beleza.

É notável também sua identificação com o espírito poético de outros autores. Ao musicar poemas de Fernando Pessoa, Oswald de Andrade, Cacaso e Leminski, o resultado é tão sintético que parece ser fruto de um trabalho a quatro mãos. O que acontece, de fato, nas boas parcerias com a inquieta Alice Ruiz, a delicada Marina Wisnik e o surpreendente Paulo Neves. Zé também toca piano em todas as faixas, com a sutileza habitual.

E Ná continua sendo Ná. Cantora excepcional, com pleno domínio de seu ofício, capaz de modular emoções de modo leve e profundo ao mesmo tempo. Ouvi-la cantar é penetrar num universo de prazer sonoro que se desdobra a cada nota. Para outras cantoras (e cantores), é uma aula de entonação, respiração exata, emissão perfeitamente calibrada. Jamais imaginei que uma canção tão perfeita quanto A Olhos Nus, de seu primeiro elepê, pudesse ser melhorada. Pois aqui ela renasce, tão bela como o sol que admiramos num amanhecer. É o mesmo velho sol, mas ao mesmo tempo é novo e apaixonante. Ná faz isso com as canções que lapida.

O CD pode ser ouvido inteiro aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ltVMa2oWqYU. Em breve , será lançado em CD físico (Circus, 2015). Aquisição mais que recomendável, pelo valor intrínseco do trabalho artístico envolvido. Disparado um dos grandes lançamentos de 2015.

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(Publicado originalmente na revistamusicabrasileira.com.br)


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