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Comentário sobre As Aparências

Passado mais de um mês do lançamento virtual do volume de contos, é hora de fazer alguns comentários. Aliás, os retornos tem sido bem positivos, e fico na maior dúvida se quem leu e ficou quieto não gostou ou tem vergonha de dar palpite.

Tenha não, minha filha, pode criticar à vontade! Sou roteirista profissional há mais de 30 anos. Tudo o que escrevo passa por impiedoso escrutínio de clientes, diretores, produtores, com rasuras, emendas, adendos, troca de seis por meia dúzia, alguns palpites pertinentes, muitos impertinentes. É um eterno confronto, mas sempre entro no ringue sabendo que vou levar porrada, mesmo que vença a luta.

Curiosamente, em literatura de ficção as pessoas tem certos escrúpulos. “Se eu falar que não gostei, será que perco o amigo?”. Claro que há uma diferença básica de um roteiro para televisão: o texto está pronto, acabado, ninguém pode mais mexer. Mas isso não impede de comentar algo do tipo “eu teria gostado mais se Maria casasse com Joana, e não com João”. É um comentário que revela algo sobre o leitor, que abre uma porta pra outra perspectiva ficcional, para outro tipo de conversa, bem melhor que o silêncio. Se ouvir algo como “achei uma droga!”, concluirei imodestamente que não é o tipo de leitor que aprecia o que escrevo. Apenas isso. Os leitores – sou um deles! – tem gostos muito diversificados, paciência.

Vamos aos amigos. O velho parceiro da Revista Música Brasileira, poeta e escritor de mão cheia (embora preferisse o bolso cheio, como todos nós) Luís Pimentel, foi um dos primeiros a aplaudir. Classificou o livro como “sedutor”. Creio que foi cativado pelo olhar da mulher da capa, obra de Lenio Braga.

O professor Claudemir Belintane, também amigo e escritor, levanta uma interessante questão formal da literatura contemporânea. Destaca que eu escrevo histórias com começo, meio e fim, não transferindo “ao leitor o trabalho de dar um final, (…) como se nisso encerrasse o prazer todo do ato de ler.”

Verdade. Os finais abertos eram novidade em meados do século XX, influenciaram o cinema dos anos 60 (Nouvelle Vague, Fellini) e se desgastaram rapidamente. No entanto, até hoje tem muita gente que usa o tal “final aberto” como muleta, pra disfarçar a incapacidade de resolver um enredo, seja literário ou audiovisual. Em cinema eu não aguento mais. Só não saio no meio do filme porque é sempre no fim!

Chico Lopes, escritor de vasta e premiada obra, autor da apresentação de meu primeiro romance, troca ideias com Belintane, e elogia a maneira como inseri elementos mitológicos em alguns contos (Teseu e As Águas do Tapajós). Verdade, a maior parte dos contos carregam referências, seja a outras histórias e lendas, seja a personagens reais. Minha literatura não é impermeável a tudo que aprendi, que ouvi, que li, que conheci, que me envolveu e emocionou em certos momentos da vida. Deixaram marcas em mim todo tipo de literatura: do Manual do Escoteiro até compêndios de mitologia grega, passando pelos cordéis nordestinos e os incontáveis contos e romances brasileiros e universais, que ainda fazem parte de minha dieta.

Isso é bem diferente de escrever sobre meus problemas amorosos, existenciais ou profissionais, como se vê por aí em grande parte da literatura feita pelos principiantes. Existe uma confusão crescente entre produzir uma obra literária de ficção e publicar páginas de seu diário íntimo. Essa relativização é típica da era da cultura massificada, onde falar do próprio umbigo ou dar receitas para curar o umbigo alheio (autoajuda) ganham o topo da lista dos mais vendidos.

Enfim, esse é um debate crucial para todas as artes, no século XXI. E fico feliz de ver como uma pequena obra, contos de um autor quase desconhecido, pode provocar reflexões percucientes. Mas, pensando bem, um verso, uma canção, uma frase num boteco, também podem. Basta haver bons interlocutores. Convido os tímidos à conversa!

Contar histórias curtas

Em outubro de 2021 o escritor Fernando Andrade fez essa pequena entrevista comigo, para o Literatura e Fechadura, após a leitura do volume de contos As Aparências, lançado em setembro.

1-) Você tira do Gênero conto muitas das suas possiblidades, concisão, ambiguidades, linguagem apurada. Deixa no seu leitor aquela impressão de o conto é grande, sempre foi, como elemento semiológico narrativo. Fale um pouco disso.

Embora o conto seja uma forma popular e universal de literatura, existe certo preconceito em relação ao seu tamanho. Há pessoas, pouco ilustradas ou muito pedantes, que supõem ser o romance uma forma superior de literatura. Costumo lembrá-las de que um gigante como Borges, por exemplo, nunca escreveu um romance.

Aliás, gosto de comparar literatura com outras artes. Um gênio influente como Norman McLaren só fez curtas-metragens na vida, e com eles praticamente esgotou todas as formas de experimentação do cinema de animação de sua época. Noel Rosa escreveu uma opereta, mas é por suas obras curtas que é aclamado.

Não é o número de páginas que qualifica uma obra. Meu livro de contos As Aparências, aliás, tem uma história curiosa. Escrevi um romance de 300 páginas, onde cada capítulo era intercalado por um conto. Foi uma longa elaboração para que a coisa parecesse orgânica, histórias dentro de uma história, um personagem escrevia e outro lia, comentava, criticava. Depois de matutar um bom tempo, joguei o romance fora e fiquei com os contos. Cem páginas a menos, e tenho a impressão de que o livro não ficou menor. Toda a carga de significados e intenções, bem ou mal, está lá.

2-) O gênero dentro de uma certa classificação nos contos dão ao autor uma grande possibilidade de experimentar variadas sequências de temas e abordagens. Podemos falar tanto no espaço sideral, quanto num lugar dentro de terra. No seu livro existem uma infinita busca por estilos de contar e sequenciar uma história. Fale um pouco disso.

Tenho certa implicância com o chamado estilo. Digamos que um escritor produza dezenas de obras monótonas, escritas do mesmo jeito, no mesmo tom, sobre um repertório estreito de temas. Dizem que ele tem um “estilo”. Outro, espírito inquieto, mais anárquico talvez, inventa, subverte, muda de tom, pula da ficção científica para a fábula infantil, do sobrenatural para o humorístico. É considerado “sem estilo”. Estilo é um valor literário? Contrariando a fórmula, podemos considerar o segundo escritor muito mais saboroso que o anterior. Literatura é um campo inesgotável de experimentação, seja na prosa ou na poesia.

No meu caso, este volume é composto por contos escritos nos últimos vinte anos. Há uma natural diversidade temática e narrativa, que reflete interesses e questionamentos de cada época. Nenhum é do período pandemia Covid 19, que certamente deixará uma incômoda marca nos próximos escritos. Não parei de escrever, mas simplesmente não caberia no roteiro do frustrado romance. Pelo mesmo motivo, um conto de ficção científica premiado não foi incluído. A coletânea foi norteada por um projeto que não incluía necessariamente “o melhor de”, mas foi uma tentativa de driblar o tédio (estilo?) alternando vozes narrativas, personagens, locais e circunstâncias.

3-) A literatura seria um jogo de montar o que já existem de tramas, e informações para com a questão do lúdico na ficção. Calvino o fez e Cortázar também. Você faz esta maquinação sobre o tempo que o jogo sempre trabalha sobre a literatura? As citações seriam um forma de atualização do jogo?

Citação é uma praga da qual tento me livrar. Um escritor iniciante cita para parecer culto, sabido. Um escritor maduro (ou um cineasta, um artista plástico, um dramaturgo, um coreógrafo, etc.) sabe que pode criar sem se apoiar em outros. Mas, ao mesmo tempo, percebe que certo tipo de público adora referências, se sente mais inteligente, dá aquele sorrisinho de “reconheci” quando topa com uma pedrinha identificável no meio do caminho.

A literatura adulta, de certa forma, é para iniciados. Há todo um cânone literário que nos antecede, e que não pode ser ignorado. Existe um tipo de literatura descartável, onde a mocinha, ou o mocinho, escreve como se estivesse num blog, falando de seus problemas pessoais. Não me refiro a isso, embora me preocupe a quantidade de títulos nas estantes das livrarias, físicas ou virtuais, que ocupam este nicho. Mas quando cito Homero, imagino que o meu interlocutor saiba quem é. Transito em outro território, um pouco diferente do comezinho, e que exige como passaporte certo amor pela literatura universal. Adoraria ter leitores clandestinos e ilegais, sem dúvida! Ainda pretendo escrever algo para o público jovem, mas é um desafio para o qual ainda não me sinto preparado. 

Calvino e Cortázar são escritores que admiro muito, por terem consciência dessa arqueologia literária, e ao mesmo tempo serem leves e profundos. Brincam com as palavras, criam enredos fantásticos sem parecerem pretensiosos.

4-) O duplo não é apenas uma imagem de um ser duplicada fazendo o jogo especular. É também uma matéria da própria ficção quando tenta se aproximar do real, fazendo tanto sínteses como mimeses. As aparências enganam? Mas na ficção traçam suas travessuras sobre os temas da psicanálise, como fantasia, e ilusão.

As aparências sempre trazem algum engano dentro de si. Se o mundo e os seus personagens fossem transparentes, unívocos, se perderia boa parte da graça, do mistério das coisas.

Há um tipo de literatura que, de fato, pretende se aproximar da realidade com a maior fidelidade possível. Temos grandes autores realistas, mas também muito realismo que não acrescenta nada. Outra vertente é que trabalha com a invenção, com a fantasia. O escritor Edmar Monteiro Filho, no prefácio deste volume, observou que nos meus contos “os pares de opostos confundem-se na instabilidade das aparências. Natural, portanto, que o fantástico, este hábil transgressor da realidade, muitas vezes irrompa.”

É verdade, tento com certa frequência pular a cerca entre realismo e invenção. Não no sentido do realismo fantástico latino-americano de mestres como Márquez, Carpentier ou Borges, mas numa releitura de Calderón de La Barca (1600/1681): a vida é sonho, às vezes pesadelo. Se literatura é uma possível representação do mundo, não pode prescindir da imaginação criativa, principalmente em tempos cruéis. Mais que nunca, não podemos permitir que os sonhos sejam banidos de nossa vida.

As Aparências

Escrevo contos há um bom par de décadas, embora só tenha publicado em antologias esparsas e alguns sites literários (portanto, obscuros e desconhecidos da grande maioria).

Sinceramente, nunca me animei muito em publicar um livro de contos. Publiquei um romance em 2016, Terno de Reis, que foi bem recebido num círculo restrito de amigos. Enquanto rascunhava causos e histórias, tive a ideia de escrever um romance de contos. Uma trama de fundo, onde cada capítulo fosse entremeado por um conto. Não se tratava de nenhuma invenção revolucionária, uma vez que desde as 1001 Noites isso não é novidade: histórias dentro da história.

Para resumir, um jovem ator se envolve com uma professora de literatura, e vai mostrando para ela sua produção. O toque de pimenta da narrativa era o romance que emergia entre um rapaz de vinte e poucos anos e uma mulher próxima dos quarenta. Ordenei os contos que estavam na gaveta em uma certa ordem, mexi em um ou outro, escrevi dois novos. As coisas se encaixavam. A professora fazia certas críticas, e o aluno tentava corrigir. Brigavam, e isso se refletia no próximo conto. Passavam um fim de semana perfeito na praia, e isso resultava em novo conto.

Ficou interessante, mas resultou em mais de 300 páginas. Em tempos de crise, recessão editorial, custos de gráfica proibitivos e política cultural sombria e obscurantista, um escritor quase desconhecido lançar um romance com tal pretensão me pareceu loucura. Minhas primeiras-leitoras se dividiram: minha sogra, Maria Alice, adorou a novela, achou que os contos atrapalhavam. Minha filha disse que final feliz era um ato ousado, nos dias de hoje. Minha amiga (e editora) Sandra Abrano se declarou fã dos contos.

Após conversa com os meus editores, resolvi lançar um livro apenas com os contos. Uma espécie de antologia pessoal dos últimos 20 anos. Alguns, até premiados, ficaram de fora. Um conto de ficção científica, por exemplo, não se encaixava. Fica pro próximo volume, se houver. Semana que vem conto mais um pouquinho das peripécias de montar um livro de contos, e o orgulho de ter uma capa de Lenio Braga e um prefácio de Edmar Monteiro Filho. A editora Penalux já colocou à venda através de seu site, ,(http://www.editorapenalux.com.br/catalogo…/as-aparencias). Aliás, visite o catálogo da editora, tem muita coisa interessante!


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