Arquivo para março \26\-02:00 2016

Via Urbis

12903605_10206176115190606_1847902394_o

                Fiz um programa diferente nessa Sexta Feira da Paixão. Fui assistir ao espetáculo de dança-teatro-poesia-música VIA URBIS, criação de Isabel Marques e Fábio Brazil. Protagonizado por três bailarinos, Kátia Oyama, Nigel Anderson e Renata Baima, secundados por um grande elenco de apoio, o espetáculo refaz os 14 passos da Via Sacra.

                O grande achado é colocar a Cidade no lugar de Cristo. Encenada ao ar livre, numa escadaria da Lapa, com música ao vivo e coro, acompanhamos a Cidade sendo condenada, carregando sua cruz, encarando sua verdade, caindo, sendo roubada, morrendo, sendo erguida e renascendo.

12896473_10206176118230682_1205323271_o

                Há grandes momentos cênicos. A morte da cidade é uma imagem fantástica, com os três atores-dançarinos crucificados simbolicamente no chão. Até um salvador da cidade (Cirineu, o candidato corrupto) aparece distribuindo folhetos de propaganda política e prometendo cadeiras de rodas. Os poemas de Fábio, declamados durante o trajeto, são contundentes:

A cidade é tua face

 A cidade é o que tu fazes

faz-se a face que fizeres

 faz-se a face que fizeres.

Ou:

Como urubus na carniça

o Juiz posa de miss

nos Tribunais de Justiça.

 12887464_10206176117270658_462555769_o

                                O espetáculo é gratuito, e será apresentado só até domingo de Páscoa. Em caso de chuva, há um plano B, pois o estúdio da companhia fica a poucos metros. Dei sorte/azar, nesta sexta. O clima fica mais intimista, e há um belo jogo de luzes e sombras nas paredes. Mas vendo estas fotos, fiquei com vontade de rever no domingo, no cenário originalmente concebido! Sinta o  clima do espetáculo e confira os horários aqui.

A perversa elegância do mal

O punho e a renda

Este romance é um exemplo perfeito de como a ficção pode jogar luz sobre o passado, iluminando meandros sombrios e revelando homens e ratos. O autor, Edgard Telles Ribeiro, é diplomata de carreira, e também escritor premiado, jornalista e professor de cinema.

O livro é aberto com a tradicional advertência “O presente livro é obra de ficção. Qualquer semelhança com pessoas vivas ou falecidas é mera coincidência.” Bem, a ficção começa aqui. Se devemos lembrar-nos de um cineasta (e vários são citados no enredo), é de Orson Welles. Um pouco de Cidadão Kane, e muito de Verdades e Mentiras.

O cenário é real”, concede o autor. A história começa em 1968, e avança numa montagem bem engendrada, com flashbacks e reflexões no tempo presente (o livro foi publicado em 2010). E bastam algumas páginas para começarmos a reconhecer personagens reais, figuras históricas e situações vividas. Alguns nomes são ligeiramente modificados, outros estão lá, com todas as letras.

O narrador é um jovem funcionário do Itamaraty, discreto, amante de jazz e literatura. Primeiro de maneira próxima, depois à distância, tenta traçar o perfil de um amigo mais velho, Max, que domina como poucos o jogo do poder. Sua ascensão profissional é favorecida pela aproximação com os militares, envolvendo-se em jogadas tenebrosas que aos poucos vão se descortinando.

O personagem, transferido para o Uruguai, articula de forma subterrânea a colaboração entre a ditadura brasileira e os militares uruguaios, e depois os chilenos. Promove contatos com empresários que financiam a tortura, se alinha com a CIA, mantém contato com o M16 inglês. Os respingos de sangue dos golpes militares no continente não parecem manchar os punhos de renda de Max, que mais adiante terá papel de destaque na aquisição das usinas nucleares alemãs. Sempre de forma não oficial, claro. Fica claro que o sonho dos generais brasileiros era ter a bomba, coisa que não interessava aos norte-americanos. No entorno do personagem, somos convidados a entrever o ambiente diplomático, suas festas e jantares, os almoços regados a bons vinhos, as disputas de poder, os ciúmes e as vaidades.

Vários livros têm sido escritos sobre o período, mas poucos tão originais como este. Ficamos espantados não com a banalidade do mal, no sentido proposto por Arendt, mas com a elegância do mal, vestido em ternos de corte impecável e fumando cigarrilhas cubanas. E o talento de Edgard Telles Ribeiro é demonstrar que não por isso seja menos odioso.

            Não é um romance político, no sentido estrito, mas antes uma investigação sobre um homem que vendeu a alma para o diabo, quando este vestia farda e comandava ditaduras. Através do agente americano, compreendemos melhor as articulações políticas subversivas da CIA no continente, desestabilizando governos e treinando aparatos de repressão.

Quem conhece o Itamaraty de perto deve saber quem é o retratado. Homem culto, observador perspicaz e espírito maquiavélico, soube aproveitar a redemocratização para vestir uma nova pelagem, chegando aos degraus mais altos da carreira. Os fantasmas que arrasta em seu passado não apontam o dedo para um colaboracionista. E se apontam, não conseguimos enxergar.

Outros personagens aparecem. A mulher de Max tem papel relevante na trama, assim como o citado agente. São estes que revelam pistas importantes para o narrador, dando um clima de thriller de espionagem ao enredo.

Escrito com maestria e inteligência, O Punho e a Renda é obra fundamental para entendermos as sombras e luzes daquele lamentável período da História. São 550 páginas de uma leitura arrebatadora, da qual emergimos com um travo amargo na boca, ao percebermos quão perto estamos dos mesmos podres interesses que fermentaram o golpe de 1964.

A canção renovada de Manuela Rodrigues

 

Manuela

            O novo CD de Manuela Rodrigues tem a capacidade de nos surpreender. Aliás, essa é uma marca da inquieta compositora e cantora baiana desde que lançou seu primeiro disco, Rotas, em 2003. Depois do festejado Uma Outra Qualquer Por Aí (2011), onde experimentações radicais conviviam com uma poética instigante, Manuela lança agora Se a Canção Mudasse Tudo, pela Natura Musical (Ouça aqui).

            A primeira impressão é de estarmos diante de uma artista plena, madura, mas nunca acomodada. Autora de 11 das 14 faixas, Manuela Rodrigues demonstra sua versatilidade misturando estilos, criando melodias angulosas e utilizando sonoridades incomuns. Aluna aplicada das lições tropicalistas, não teme lançar mão do precioso acervo musical brasileiro, como na Marcha do Renascimento, uma marcha-rancho de letra maternal (seu filho nasceu durante as gravações do CD) ou no simpático samba Nenhum Homem é Uma Ilha, parceria com João Cavalcanti (Casuarina), que a acompanha nos vocais. No bolero pós-moderno Amor de Carne e Osso quem divide o microfone é a carioca Silvia Machete.

            Como já tinha feito no disco anterior, Manuela volta a gravar uma intrigante canção de Rômulo Fróes e Clima (Vai Que Eu Desembeste), de letra quase concretista.  Faz também uma boa releitura de Gil (Extra 2 – O Rock do Segurança) e canta Ronei Jorge (Risos) com um arranjo inspirado. Mas é em grandes canções autorais, como Rede Social, que ela reafirma sua condição de fina observadora do nosso cotidiano midiatizado.

            A riqueza sonora do disco também se deve a uma decisão acertada: as faixas têm diversos produtores (André T, Tadeu Mascarenhas, Gustavo Di Dalva, Luciano Salvador Bahia e João Milet Meirelles). E a artista se declara na letra-manifesto da faixa de abertura, Lista:

                Conservar velhos amigos/ deixar diferenças de lado                                                               Aceitar o novo/ novo é novo/ libertar o passado.

Enfim, Manuela está menos “Tom Zé” que no disco anterior, embora esta influência ainda apareça nítida na ótima Desejo Batuque. No conjunto, soa mais pop, mais lírica, cercada de ótimos músicos, e está cantando como nunca. Se a Canção Mudasse Tudo é um grande e ensolarado disco que vem lá da Bahia para iluminar este conturbado ano de 2016.

(Publicado originalmente na Revista Música Brasileira).


Arquivos