Posts Tagged 'Airton Paschoa'

Dárlin fulgidia

Dárlin

A narrativa-correnteza de Airton Paschoa é acidentada. Tropeça em dilemas morais, volteia por desejo e frustração, encaracola-se em presenças e ausências e revela uma beleza tortuosa, como um riacho de montanha engordado por chuva repentina. A tempestade é provocada pelo surgimento de Dárlin na vida do narrador, um homem maduro e casado que vislumbra na jovem Darlene (garota de programa? jovem sem-teto? anjo decaído?) a redenção de sua mediocridade.

Em pouco mais de 60 páginas, a silhueta fulgidia de Dárlin cintila na avenida Paulista, se desvanece na penumbra de um casarão onde casais de respeito praticam swing, se revela num banheiro público, se multiplica numa passeata rumo à Praça da Sé. São 121 passos-capítulos, que formam o mosaico de epigramas, interrogações, poemitos, angústias e sarcasmos desta via-sacra laica.

Inconformista, a escrita de Paschoa não se submete a tendências literárias da moda, mas revela referências universais. A insubmissa Dárlin é uma Nadja tropical, e impõe um clima de surrealismo poético e decadente à confissão embriagada do protagonista. Ao mesmo tempo, a narrativa assume os tons de um realismo alucinado, de uma Traumnovelle brasileira, irisada e sintética. Fugindo do lugar comum, o riacho revolto não morre num pântano de platitudes: permanece em território escarpado, fustigando a imaginação do leitor.

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Veneta literária

Levante

          A escritura de Airton Paschoa é uma desconcertante jornada em direção à síntese, ao aforismo. Seus textos são enxutos, mas se metamorfoseiam, se contraem, se distendem, revelam entranhas das palavras e invertem significados, e não conseguem se descontaminar da poesia. Não que ele almeje ser poeta, e sobre isso é taxativo: prefere ser chamado de poemista em prosa. Pode ser falsa modéstia, pode ser ardilosa armadilha.

          De fato, é notável em seu percurso literário uma aversão aos formatos consagrados. Contos que não são contos, uma novela (Dárlin) fora do padrão, vários textos curtos inclassificáveis. Uma pequena coleção de paradoxais sonetos elisabetanos aumenta a perplexidade do leitor, e parece indicar uma espécie de aula de carpintaria. Paschoa prova que domina as ferramentas, mas prefere usá-las de forma subversiva.

            Tomemos seu último livro, Levante (Nankin Editorial, 2017). Na orelha Maria Rita Kehl adverte: Airton não usa trabuco, mas é bom de navalha. Daquelas tão afiadas que o leitor nem sabe de onde veio o golpe: vai ver, já está sangrando.

             Está dada a pista. A ironia feroz, o chiste com pinta de erudito, a reflexão amarga, o epigrama cínico, a observação aguda e cortante. Muitas vezes aponta a navalha para o próprio estômago e expõe sem pudor suas lucubrações, como em Sistema Literário:

           Me doo aos amigos, que me doam sem dó pro sebo, onde dou por mim condoído, e me doo de novo aos amigos, que me doam sem dó pro sebo, etc. etc., onde dou por mim, finalmente, sem me condoer, só meio moído, a lombada surrada, meio agastado, miolo meio mole, em estado de brochura avançado.

           Na maioria dos textos há um embate implícito entre prosa e poesia, que se infiltra nas antinomias elaboradas, nos estripitismos (neologismo do autor) confessionais, nos trocadilhos inusitados. Quem mais, ao procurar pelo em ovo, encontraria elo em povo? Ou perguntaria se as nuvens servem para tapar olvidos (sic)? As palavras são a obsessão do poeta (vá lá, poemista), e se o leitor for apressado perderá detalhes saborosos. Quando tudo faz água, mudamos debalde a contracorrente. Frágeis naufragmentos. Os grandes calados, sabem os médicos e os marujos, sangram, singram o que topam pela frente.

             E mais não entrego, porque isto é apenas uma degustação. Se quiser uma garrafa cheia desse vinho, vá em frente!

 

 


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