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Alpharrabio, 25 anos

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Há 25 anos eu trabalhava em Santo André, na região do ABC paulista. Morava em São Paulo, e ia de trem todos os dias. A grana era curta, mas era foi um período muito rico em experiências. Participava de um governo popular, com propostas inovadoras e muita vontade de acertar.

            21 de fevereiro de 2002. Fim de tarde, quando encerrava o expediente na Secretaria de Cultura, alguém veio me chamar para um evento diferente: festa de inauguração de um novo sebo-livraria na cidade, o Alpharrabio. Quem convidava era a poeta, escritora e agitadora cultural Dalila Teles Veras.

            Não recordo de muitos detalhes, confesso, mas lembro da casa cheia, alguns conhecidos, muitos desconhecidos. Até o prefeito Celso Daniel passou por lá, naquela noite. Bebidinhas, boas conversas, abraços, mas eu tinha que pegar o trem antes que fosse muito tarde. Foi bonita a festa, pá!

            Na década seguinte, saí e voltei para Santo André algumas vezes. A Alpharrabio cresceu, tornou-se um ponto de referência no ABC. Criou uma editora com mais de 200 títulos publicados. Muito mais que um sebo, é um verdadeiro centro cultural. Rolam shows de música, espetáculos de dança, teatro, exposições de artes plásticas e, claro, eventos literários. Lançamentos, debates, tertúlias, saraus, homenagens e comemorações diversas. Por ali passou uma lista extensa de artistas e intelectuais, nacionais e internacionais.

            Encontrei-me com a Dalila várias vezes. Chegamos a trabalhar juntos durante um ano, quando gravamos um quadro semanal para o programa ABCD Maior, veiculado pela Rede TV!, aos domingos. O assunto? Cultura, claro.

                        Quando terminei o primeiro romance, Terno de Reis, há dois anos, fiz questão de fazer um lançamento no ABC, cenário de boa parte da trama. E não poderia ser em outro lugar senão o Alpharrabio! Em São Paulo, essa metrópole onde moro há mais de 40 anos, não conheço um lugar com as mesmas características: amistoso, convidativo e estimulante.

Alpha 2

            No último sábado, dia 04 de março, rolou a festa dos 25 anos. Um quarto de século! E não faltaram amigos, sorrisos, brindes e abraços. Bom reencontrar a onipresente Maninha, rever o grande Teles, conversar com os novos e antigos amigos. Nem vou nomear todos os conhecidos, pois corro o risco de esquecer algum. Como lembrou a Dalila, citando o dramaturgo Luiz Alberto de Abreu, o Alpha é um lugar onde todos se abraçam e confraternizam, em torno de um projeto cultural.

Alpha 1

Num país fragilizado, onde a cultura está sendo relegada a segundo plano, onde livrarias estão fechando, onde governos cortam verbas para a educação, onde o futuro está sendo rifado a preço vil, é um alento ver que um grupo de sonhadores insiste em construir, formar, produzir, compartilhar artes e saberes. Que venham mais 25 anos. Resistiremos!

(Fotos: Wilson Rodrigues)

Memórias insulares

Dalila

“Terra,

Quando te cinges de água,

Tanto mistério se encerra.”

(de uma antiga canção praiana)

            Termino a leitura de Solidões da Memória (Dobra Editorial/ Alpharrabio, 2015), de Dalila Teles Veras, com a sensação de ter compartilhado uma viagem atemporal. Mais que um conjunto de poemas, o livro é o itinerário poético e existencial de uma menina nascida na ilha da Madeira que vem para o Brasil com onze anos e retorna, adulta, ao cenário da infância.

            A primeira parte do livro, que tem o belo nome de Insularidade, é primorosa. Lançando mão de epígrafes de poetas e fadistas de ambos os lados do Atlântico, Dalila nos revela em cada poema fotogramas de um filme íntimo cujas sensações podem ser intransferíveis, mas são ali compartilhadas.

Havia manhãs

em que ao abrir da janela

era só o mar e o mar

o mar

o mar

o mar.

            Poesia quase tátil, de uma criança cercada pelo mar quase infinito. Cada poema é um indício e uma construção. A escola, as primeiras letras, os trajetos circulares, as personagens esculpidas em vento e sal. A paisagem vai ganhando nitidez ao nosso olhar também salgado de lembranças.

            O breve capítulo “aventura em preparo” fala da última fotografia na ilha e do baú de viagem, feito pelo tio. “Ali, na austeridade da arca/ a casa/ reduzida ao essencial.”

            A terceira parte, “travessia e chegada/ ruptura” enriquece ainda mais o leque de imagens e sensações. “onze foram os dias/ enjoo, sarna e tédio”. O primeiro porto, Recife, revela os “torsos negros azuis suados/ e o cheiro despudorado/ do abacaxi a anular o resto”.

 A quarta parte, “regresso ou tentativa de”, é a mais pungente. Quem retorna ao Funchal não é mais a menina, mas a mulher adulta, vivida, que já não cabe na ilha (ou em outro lugar qualquer). Busca a “paz impossível” no mergulho da memória, e parafraseia Drummond: “a madeira não é apenas fotografias (…)/ mas é/ a memória do que não foi/ e sequer dói”.

O livro se completa com um indispensável roteiro (“dos registros prévios”), onde a autora investe na palavra rizoma e todos os seus significados. Ali explicita que “o mar invade os sentidos, especialmente o olfato e o olhar, mas é o subterrâneo que me interessa.”

Eu, nascido também à beira mar de outra ilha, a qual chamam continente, e transplantado para São Paulo com dez anos, mergulhei na “líquida travessia” de Dalila Teles Veras como se levado pela mão de uma amiga de infância. E, confesso, voltei outro.

 

 


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