Arquivo para junho \30\-02:00 2012

Som Mozum

A comunidade do Butantã continua na luta pela preservação da nascente do Morro do Querosene. Por ali passava o lendário Peabiru, o caminho utilizado pelos primeiros habitantes destas terras, muito antes de Cabral.

A fonte histórica, que matou a sede dos tropeiros no século XIX, está hoje num terreno particular, que foi tombado este ano pelo Patrimônio Histórico. A intenção é que o local seja transformado num parque, para usufruto de todos.

O grande ato será nesse domingo, 01/07, no Morro do Querosene, lá no Butantã. Vamos lá?

Cine Teatro Carlos Gomes

Amigos me convocam para ato em defesa do histórico Teatro Carlos Gomes, em Santo André. A desastrosa administração atual está destruindo um patrimônio cultural inestimável da cultura paulista e brasileira.

O Cine Teatro Carlos Gomes me provoca uma nuvem de lembranças. Em 1998 fui convidado pelo Secretário de Cultura do município, Celso Frateschi, para tocar a reabertura do velho prédio. Como já havia trabalhado na Secretaria de Cultura anos antes, na primeira gestão de Celso Daniel, aceitei com prazer.

O Carlos Gomes era um velho edifício retangular, com uma plateia de 800 lugares e um amplo saguão, como eram os cinemas de antigamente. Possuía dois grandes projetores de 35 mm que fizeram a alegria de muitos cinéfilos. Reza a lenda que o prédio, inaugurado em 1925, foi o quinto cinema do país. Uma grande estrela de gesso decorava o teto, e virou símbolo do lugar.

Estava fechado há muito tempo, e precisava de restauração. Na década de 80 chegou a virar estacionamento. Sem grandes verbas, optamos pela ousada via de reabri-lo sem reformá-lo totalmente, pois um cinema só se mantém vivo… exibindo filmes! Um teatro, montando peças. Um espaço cultural, promovendo eventos. Palco vazio é palco morto.

A festa de reinauguração foi linda. Na tela, o Baile Perfumado, vibrante exemplo de retomada de um cinema brasileiro inventivo e cheio de energia. No saguão, uma exposição sobre o cangaço, com fotos, objetos, armas, vestuário e cordéis. O público lotou, aplaudiu, comeu pipoca, vibrou. E, no final do filme, começou a rolar num palco ao ar livre o show da banda Mestre Ambrósio, participante da trilha sonora do filme pernambucano.

O Cine Teatro Carlos Gomes mostrou que tinha potencial para se tornar um centro cultural audiovisual importante no centro de Santo André. Em um semestre, ainda montamos uma exposição e uma mostra de filmes do Mazzaroppi, promovemos a estreia do filme Bocage, o Triunfo do Amor, de Djalma Limongi Batista. Outra linda exposição foi montada, com cenários e figurinos do filme, assinados por Lino Villaventura. Lembro-me do empenho de Diaulas Ulisses, sem o qual o evento não teria ocorrido.

Pouco tempo depois, saí de Santo André para me aventurar em campanhas eleitorais no Nordeste. Aconteceu a tragédia com Celso Daniel, e as gestões seguintes abandonaram o Carlos Gomes.

Depois de um grande movimento na cidade (o SOS Carlos Gomes, que reuniu 23 mil assinaturas) o prédio foi tombado pelo Patrimônio Histórico da cidade, em 1992. Nos últimos anos, estava novamente fechado.

O atual desgoverno iniciou uma reforma (?) que começou pela destruição do símbolo maior, a estrela de gesso. E é contra esse descaso que o povo de Santo André vai se manifestar nesta sexta-feira, 29 de junho.

Não poderei comparecer. Mas meu coração, certamente, bate junto com o de todos que tocam esta batalha. É um ato pela cultura, pelo teatro, pelo cinema, pela cidadania de Santo André. O Cine Teatro Carlos Gomes não pode morrer!

Pra não dizer que não falei de flores

 

E minha flor de maio floresceu em junho… Se foi para comemorar os resultados da Rio+20, coitada!

Depois conto pra ela, com cuidado, pra que não murche imediatamente.

Plínio Marcos e o samba paulista

Aparece tanta gronga, boiando nas águas barrentas em que navego contra a maré, que meu patuá de fé e de valia já anda até entortado.

Com essas palavras o dramaturgo das quebradas do mundaréu, Plínio Marcos, subia ao palco em 1973 para apresentar com sambistas de São Paulo. Também com elas o crítico Fausto Fuser saudou, nas páginas da Folha de SP, o espetáculo que unia, em plena ditadura, o censurado Plínio e os marginalizados compositores Geraldo Filme (1928-1995), Toniquinho Batuqueiro (1929 – 2011) e Zeca da Casa Verde (1927 – 1994).

O espetáculo misturava piadas, causos e sambas, e driblava a censura pesada do período. Plínio tinha várias obras proibidas, mas o texto ali era meio improvisado, em cima da malandragem e da cultura popular.

Dirigido por Emílio Fontana, o espetáculo jogou luz sobre um tipo de produção musical que andava fora da mídia. São Paulo havia se tornado a terra dos festivais, dos músicos pop, berço da nova MPB, e relegava seus sambistas de raiz ao anonimato. A matriz carioca-baiana era mais influente no samba, como é até hoje, e os nomes que se destacavam nacionalmente eram apenas Adoniran Barbosa e Vanzolini.

Plínio Marcos em Prosa e Samba apontava para outra direção. Para um samba negro paulista, de netos de escravos, que lutavam para manter a tradição em suas comunidades, nas escolas (de samba), nos quintais, engenhos e subúrbios. É bom lembrar que o dramaturgo já havia escrito peças onde a música cumpria função destacada, como Balbina de Iansã, e Os Pagodeiros, encenados no Teatro de Arena.

Os três sambistas haviam participado desses espetáculos, havia uma camaradagem entre eles. Quando a censura apertou, e qualquer texto de Plínio Marcos era imediatamente proibido, surgiu a ideia de um espetáculo apenas musical. Plinio seria uma espécie de mestre de cerimônias, e os bambas mostrariam seu repertório.

O espetáculo fez sucesso e foi gravado. Lançado em 1974 pela Continental, com tiragem pequena, não alcançou sucesso nas rádios e virou preciosidade para colecionadores.

Agora, em 2012, depois de muitos anos fora de catálogo, o CD é relançado com o selo Warner, pelas mãos do garimpeiro Charles Gavin. O CD traz texto de apresentação de Tárik de Souza, e pretende ser lançado em shows especiais, com músicos contemporâneos.

Dizer que é histórico é pouco. É indispensável na prateleira de qualquer amante da boa música brasileira. Belos sambas, gravados num espetáculo que virou símbolo de resistência popular numa época de sufocante falta de liberdade.

(publicado originalmente na Revista Música Brasileira)

Carlão

Semana complicada, de muito trabalho. Demorei para  escrever sobre a morte de Carlos Reichenbach, pois a sensação de proximidade ainda é muito grande. Medo de contaminar o texto com doses desmedidas de emoção.

Carlão – como era chamado pelos amigos – foi uma figura que marcou muito a minha geração de estudantes de Cinema, do início dos anos 80. Intelectual, culto, sofisticado, não teve pudor em realizar seus primeiros trabalhos na Boca do Lixo, com atores que muitas vezes saíam de uma pornochanchada para seus filmes. Era o cinema possível, sob a censura da ditadura militar. Lembro do empolgamento de minha turma com Lilian M: Relatório Confidencial. Um filme digno de figurar ao lado de O Grande Momento (Roberto Santos),  São Paulo S/A (Person) e Noite Vazia (Khouri) como uma dos mais completos retratos das relações humanas numa metrópole como São Paulo.

Me encantou o fato de personagens se movimentarem de forma coreografada. Ele explicou que usou playback nas cenas, o que era inusual, pelo menos em filmes não-musicais. Aliás, Carlão entendia de música, tocava e compunha no teclado com desenvoltura.

Suas pornochanchadas mais hardcore tinham momentos desconcertantes. Enfiava filosofia no meio da orgia. Lembro do filme A Ilha dos Amores Proibidos, onde um casal transava lendo o Livro Vermelho de Mao-Tsé-Tung. Citações visuais do cinema japonês e de filósofos alemães eram usuais na sua obra, embora poucos percebessem. O público habitual das pornochanchadas odiava, e o público dito “culto”, bem, esse não assistia pornochanchadas… Ou não confessava.

Convivemos uma semana num Festival de Gramado, no início dos anos 80. Ele, pela primeira vez concorrendo com um longa (acho que Império do Desejo). Nós, estudantes de cinema, com um curta-metragem de animação. Ele parecia um adolescente tímido, meio envergonhado de subir ao palco. Mas no bar do hotel, dava aulas de cinema e sabedoria para os mais jovens. Surgiu dali uma amizade meio silenciosa, que se revelava através de fortes abraços quando nos encontrávamos nos bares da rua Augusta, em São Paulo. (Era outra a rua Augusta, crianças).

Eu desandei da vida de aspirante a cineasta, me afastei daquele mundo. Carlão perseverou, e criou obras inesquecíveis. Talvez Anjos do Arrabalde seja o filme mais “paulista” dele, embora eu goste menos que outros. Filme Demência consolidou sua fama de cult, alternativo, independente. Alma Corsária me agrada mais, tem cenas inesquecíveis. Dois Córregos é decididamente ruim.

Percebo que o afastamento me fez mal. Não vi os últimos filmes dele, vou correr atrás. Arrisquei uma espiada no Reduto do Comodoro, blog que ele mantinha com afinco (Comodoro era um dos cinemas 70 mm de São Paulo, para quem não sabe), mas não quis me confundir com um simples fã. Nunca postei nada lá. Mas neste fim de semana me peguei sentindo falta daquele abraço de urso…

A despedida de Ivan Lessa

A morte de Ivan Lessa me provocou uma melancólica reflexão sobre o humor em nosso país. Reli algumas de suas crônicas, e é nítido que vai fazer muita falta. Seu texto me atraía desde o tempo em que, adolescente, lia seus artigos no Pasquim. Na época, não demorei a descobrir que ele também encarnava o anárquico Edélsio Tavares, que respondia as cartas dos leitores no combativo hebdomanário. Meu colegas duvidavam, pediam provas, achavam que era outro redator, talvez Millor, talvez Paulo Francis. O segredo foi mantido por algum tempo, até que uma inconfidência jornalística comprovou a minha tese.

Gip Gip Nheco Nheco, a coluna escrita por ele e ilustrada por Redi, Jaguar e outros craques, era uma delícia. Não que fosse perfeito (certa vez confundiu lemingues com lêmures, acho que só eu percebi), mas era quase isso. Um texto enxuto, com alta graduação de ironia, sarcasmo e certo ceticismo perante o mundo. Era um pessimista, no fundo (e também na superfície). Morreu convicto de que o nosso planeta vai de mal a pior, e que a humanidade não tem solução.

“Áivan Lissa”, como diziam os brasileiros que queriam sacaneá-lo, escreveu que “todo homem tem o sagrado direito de ser imbecil, por conta própria”. Talvez por isso, dava um desconto para o humor de agora, grosso, sem sutilezas. Achava que, nos anos 60 e 70, seriam todos assim, mas a censura, a ditadura e os costumes de época não permitiram. Isso fez com que o humor se sofisticasse, criando duplos sentidos e jogos de palavras que os censores deixavam passar, engolindo frangos históricos de nossos craques.

Tendo a discordar. Afinal, grossura existe desde o início da humanidade, e não se refinou durante a ditadura (basta ver as pornochanchadas da época). E o próprio Ivan, em sua produção, jamais abdicou da inteligência para fazer humor. Era um pesquisador nato de expressões picantes, ditados curiosos  e canções brejeiras (e sérias também, claro). Carregava um outro Brasil dentro dele, bem diferente deste que está na mídia.

Quando assisto a performance de certos humoristas contemporâneos, incultos e rasteiros, tenho certeza de que não gastaria um real pra ver esses caras num palco. Na TV, mudo de canal. Afinal, pra ouvir grossura, basta ir num boteco qualquer e se misturar com a peãozada. É mais autêntico. Já ri muito ouvindo histórias da boca de caminhoneiro, de pescador, de estudante. Mas não pagaria por isso. Infelizmente, tem patrocinador que banca esse tipo de humor chulo em lugares impróprios, como na televisão, na música, no cinema. E, pior: muito desmiolado consome as cretinices excretadas e, de quebra, o produto dos anunciantes!

Citando o próprio Ivan Lessa, “tem gente por aí que tem os dois pés no chão – e as mãos também.” Enfim, o humor culto perde mais um militante, no mesmo ano em que se foi Millor Fernandes. Tá difícil achar substitutos!

Memórias de Chico Lopes

Livro de memórias é sempre um desafio. Para quem escreve e para quem lê. Uma coisa é escrever ficção, inventar causos, se colocar na pele de múltiplos personagens. Outra é se desnudar em público, contando a própria vida de forma transparente, com os tombos e as alegrias que ela pode conter.

            Chico Lopes, escritor experiente, autor de três livros de contos e uma novela, também crítico de cinema e pintor, se sai muito bem na tarefa. Nascido numa cidade pequena, Novo Horizonte (SP), descreve com  acuidade o cenário cultural estreito e sem perspectivas, a clássica estrutura familiar patriarcal, a dificuldade de crescer num ambiente onde gostar de “arte” é visto de maneira preconceituosa.

            Creio que muita gente sentiu isso, durante a infância e a adolescência. Muitos desses inquietos se mandaram pra metrópole, e hoje são jornalistas, artistas, professores, etc. Outros são apenas frustrados, sem nunca terem desenvolvido totalmente sua potencialidade. Uns ficaram para trás, outros piraram. Chico Lopes construiu uma trajetória singular: depois de 40 anos na cidade natal, mudou-se para Poços de Caldas, onde vive até hoje, produtivo e conectado com o mundo.

            Não conheço Novo Horizonte, mas muito me lembrou a Itabira de Drummond, aquela do verso “Eta vida besta, meu Deus!”. Chico Lopes, que conheci pessoalmente há pouco tempo, escreve com fluência e ritmo admiráveis, além de demonstrar tocante sinceridade. A leitura me envolveu desde o início, e varei o livro em duas noites, reconhecendo aqui e ali personagens e situações embrionárias depois desenvolvidas em seus melhores contos.

Eu, que nasci e vivi em cidades grandes, de vez em quando tenho vontade de procurar um novo horizonte. Um livro como o de Chico Lopes  faz pensar, refletir, e reavaliar nossa vida. Claro que as cidades mudam, algumas lentamente, outras de forma destrutiva. Mas a eterna insatisfação humana, a vontade de “querer mais”, de mudar a rotina das coisas, essa pode estar presente em qualquer lugar: praia ou montanha, deserto ou floresta, centro ou subúrbio, vilarejo ou metrópole.

Chico lança no dia 8 de junho suas memórias em Novo Horizonte. Deve ser uma experiência fascinante voltar à terrinha e rever os rostos dos amigos, muitos registrados no livro. E imagino que seja motivador para os jovens insatisfeitos ver um conterrâneo voltar como escritor reconhecido, crítico atuante, tradutor e cronista de velhos e novos tempos.

A Herança e a Procura será lançado no dia 8 de junho, às 20h, na Rádio Esperança FM (Rua Otaviano Marcondes, 797). Brindarei ao teu sucesso, aqui de Sampa, Chico!

Mr. Sganzerla, o filme

É fascinante assistir o documentário vencedor do Festival É Tudo Verdade de 2012. O diretor, Joel Pizzini, conseguiu o feito de quase anular a sua personalidade criativa, adotando uma forma totalmente sganzerliana de trabalhar as imagens. Mas notamos que há uma inteligência reverente por trás de tudo, fazendo uma homenagem de estilo.

O filme começa caótico, tremido, delirante, desfocado, e tem gente que abandona em dez minutos. Mas as coisas começam a se alinhar, começamos a perceber a ordem da proposta, e do meio pro fim vira uma delícia. Realmente vivenciamos as palavras, o pensamento, as imagens do anárquico diretor que se notabilizou como com dos pioneiros do Cinema Marginal, pós-Cinema Novo.

                Não é um documentário tradicional, claro. Talvez faltem algumas legendas de identificação, em certos momentos. O jovem de 22 anos que filmou o Bandido da Luz Vermelha, marco do cinema brasileiro, em 1968, era um mitômano. Idolatrou Orson Welles, emulando seus filmes e tentando recriar sua aventura brasileira, o inacabado filme It’s All True, que dá nome ao festival. Ao mesmo tempo, cultuou Noel Rosa e Jimi Hendrix, dedicando filmes a cada um deles. A contracultura alucinada, o contato com as drogas, a fuga da realidade sob uma ditadura que não dava opções (“quando a gente não pode fazer nada, a gente avacalha!”), tudo isso ajudou a criar a figura do intelectual na contramão, contra tudo e contra todos, meio arrogante, meio patético, com uma obra sempre aquém das ideias por falta de grana.

                Até por isso, Godard, Méliès, Oswald de Andrade e Zé do Caixão também estão presentes no seu ideário (e no filme).  A grande ausência certamente é Glauber Rocha, figura central do período, ex-marido de Helena Ignez, musa de Sganzerla. Ela interpretou e ajudou a produzir todos os seus filmes, além de terem duas filhas. É personagem central, protagonista das principais cenas “atuais”.

                Que o Cinema Marginal é filho do Cinema Novo ninguém discute. Filho rebelde, complicado, que muitas vezes quis matar o pai. Existiria sem o precursor? Talvez essa discussão mereça outro filme, mas é a única lacuna que senti em Mr. Sganzerla – Os Signos da Luz.

Portanto, aplaudo o trabalho de Joel Pizzini e de Maria Flor, produtora e assistente de direção. Minha filha, pra quem não sabe!

Encontro com Modigliani

Sexta-feira, quando saí de uma reunião de trabalho na Avenida Paulista, me deparei com uma cena curiosa. Sob o vão do Masp, um homem fazia um discurso entusiasmado para meia dúzia de estudantes que o ouviam, atentos. Ao lado, um cartaz anunciava o fim do mundo, em 20/12/2012, quando o planeta Vênus vai explodir por estar em sei lá que conjunção com outros planetas. Claro que o homem tinha bilhetes para a salvação “com Jesus”, e quem não comprar agora afundará nas trevas.

                Parei um pouco, divertido com a conversa. De repente, meu foco visual se ajustou para o fundo da cena, onde um cartaz anunciava as exposições do museu. Caramba, há quanto tempo não entro no Masp? Calculei que faria bem trocar a hora de almoço por um reencontro com as obras que marcaram minha juventude.

                O museu não é o mesmo que conheci pela mão de meu pai, em meados do século passado. Nem mesmo quando passava longas tardes por lá, na época de estudante, em 1979, com uma namorada que estudava Artes Plásticas. Os famosos painéis de vidro criados por Lina Bardi, que faziam os quadros flutuarem no andar inteiro como se fosse grande instalação, não existem mais. Hoje tem uma cara mais tradicional, parece com outros museus, digamos, comuns: quadros pendurados em paredes (ou divisórias). Mas que quadros!

                Além do acervo permanente, com obras que sempre tenho prazer em rever, como quem revê velhos amigos, o que me provocou o impulso de entrar foi a exposição de Modigliani. Ecoou na lembrança a voz de minha mãe, que sempre dizia “Modi, le maudit” quando se referia ao perturbado artista. E também as grandes mulheres nuas, mulheres-paisagem, sempre com braços ou pernas cortadas, que incendiavam minha imaginação infantil nos livros de arte de meu pai. Não eram os nus clássicos ou românticos, que não me causavam nenhum frisson erótico, acostumado que estava com aquelas imagens desde pequeno. Era uma coisa diferente, ao mesmo tempo provocante e inatingível.

                Pois este Grande Nu está lá, claro, além de vários retratos famosos. No primeiro piso, descendo o elevador, uma bem organizada exposição conta a história de Amadeo Modigliani, através de painéis didáticos e uma linha do tempo, desde que saiu de Livorno, na Itália, até a morte em Paris, aos 36 anos. No meio do caminho, as bebedeiras, drogas, mulheres, amigos e inquietações artísticas. Nota-se claramente o percurso estético do artista, oscilando entre a herança romântica, a influência primitiva (como suas esculturas se parecem com máscaras africanas!) e as revoluções que ocorriam à sua volta, como o Cubismo.

                As fotos (há várias) são fascinantes. Creio que fiquei mais tempo diante delas que das obras. Jeanne Hébuterne, a jovem com quem viveu os últimos anos, era linda. Suicidou-se, grávida de 8 meses, no dia seguinte à morte do “mauldit”. Tinha apenas 21 anos.

                Modigliani conviveu com muitas estrelas, na Paris do início do século XX. Há fotos dele com Picasso, Brancusi, Cocteau, Apollinaire, Kisling, Juan Gris, Soutine… Retratou vários amigos, fez um único auto-retrato, que também está exposto no Masp.

Aliás, retrato é o que não falta. Entre no Google Imagens e digite “Modigliani”: você não verá uma única paisagem ou natureza morta! A não ser que considere aquelas grandes mulheres nuas uma espécie de paisagem. Aí é outra viagem…


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